Texto de Marco Fialho
Víctor Erice pode não ser um daqueles cineasta que mais realiza filmes na carreira, embora cada obra lançada seja envolta no mais fino interesse. "O Sul", filmado em 1983, dez anos após a obra-prima "O espírito da colmeia" volta para mostrar o quanto possui uma visão privilegiada de cinema. Que obra, que completude de filme é "O Sul". A palavra cinema encaixa muito bem em Víctor Erice.
Erice faz parte daqueles cineastas que nasceram para filmar, pois tudo em sua mise-en-scène parece surgir na tela como uma naturalidade absurda, entretanto a genialidade está em todos os planos de "O Sul", desde os enquadramentos pictóricos emoldurados por um conceito fotográfico e de cor impecáveis. Cada plano é uma aula de cinema, de como narrar, pensar o quadro e como desenvolver a história.
O uso que Erice faz do extracampo é fantástico e ele o implementa especialmente pelo som. Em vários planos o som é quem complementa a imagem, e esse campo sonoro está a ampliar a imagem que vemos, seja pelas vozes ou pelos sons de objetos ou trem. É um cineasta pleno nos fazendo saborear cada instante.
O filme é narrado por Estrella, uma jovem que lembra de sua infância, em especial da sua relação com um enigmático pai. Creio ser "O Sul", o processo de amadurecimento dessa jovem, que por meio do pai aprende involuntariamente muitas lições sobre a vida. Estrella descobre amargores ao seguir o misterioso pai, que volta e meia sumia de casa a perambular pelas ruas da sua cidade.
Como em "O espírito da colmeia", o cinema é uma referência para a própria história. Há uma sala de cinema que se transforma em personagem na trama. Há uma referência a um cartaz de um filme de Alfred Hitchcock, "A sombra de uma dúvida" (filme inclusive que fala da relação entre uma sobrinha e um tio misterioso). A referência vira rapidamente citação quando de repente Erice incorpora "Um corpo que cai" na mesma cena do cartaz, com o pai vendo uma foto da filha numa loja (parecida com a cena de James Stewart vendo o quadro na galeria) enquanto a filha se transforma em uma voyeur ao observar de esguelha o pai na rua.
Outra referência ao cinema é uma antiga namorada do pai de Estrella que se tornou atriz e ele vai assistir a um filme dela em cartaz, um ato voyeurístico do pai, que envia uma carta para a antiga amada. O filme inclusive tem esse tom epistolar, de troca de cartas e de diário com a presença da narração em off de Estrella.
"O Sul" é sobre essa busca de uma filha para entender o pai. Algumas cenas e sequências são primorosas tanto visualmente quanto narrativamente, como a de Estrella se escondendo debaixo da cama e a do novelo vermelho que vai se dissolvendo tal como a própria visão de Estrella. É possível observar a influência de Erice no cinema contemporâneo espanhol e mundial. Lembro de imediato dos filmes do espanhol Carlos Vermut e do finlandês Aki Kaurismäki. A força e influência do cinema de Víctor Erice é visível e inegável. Felizmente, em 2023, Erice voltou a filmar, realizou "Fechar os olhos", mas aí já cabe a escrita de outra crítica.
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