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PEDÁGIO (2023) Dir. Carolina Markowicz


Texto de Marco Fialho

É raro um(a) diretor(a) estrear no longa-metragem com um filme do tamanho e expressão de um "Carvão" (pode-se ler a minha crítica para Carvão no link: CARVÃO (2022) Direção Carolina Markowicz (cinefialho.blogspot.com)), como foi o caso de Carolina Markowicz. Agora, com "Pedágio", seu segundo longa, a diretora vem reafirmar o seu talento para narrativas de maior fôlego. 

O que mais me chama atenção em "Pedágio" é a narrativa sem arestas na qual Carolina constrói seu filme. Assistimos a uma obra perfeitamente lapidada, em que cada plano, cada cena e sequência possuem apenas o necessário. Essa economia narrativa eleva "Pedágio" a um patamar cinematograficamente superior a "Carvão". Não estou aqui dizendo que um é melhor ou pior, porque isso seria uma questão meramente de gosto, e gosto, cada um tem o seu. O assunto aqui é o uso dos recursos cinematográficos para se narrar uma história. "Pedágio" é seco, mesmo que o seu drama envolva emoções fortes, os cortes parecem já pensados na filmagem, por isso são precisos e cortantes, além de dizerem sempre muito sobre a história e personagens. 

E o que dizer sobre as atuações? Esse é nitidamente um trabalho de carpintaria dramatúrgica do mais alto nível. Nota-se que os atores estão dirigidos em cada cena e suas intenções estão trabalhadas no máximo do rigor. Maeve Jinkings e Kaun Alvarenga estão impecáveis como Suelen e Tiquinho. Ela como uma mãe evangélica, inconformada com a orientação sexual do filho que a cada instante caminha para o irrevogável. O caminho da tal cura gay, lhe cai em mãos por uma colega que trabalha com ela no pedágio de carros em Cubatão, cidade mais poluída do país com suas tenebrosas fumaças das indústrias petroquímicas. Pode-se dizer que Cubatão, e seu ambiente acinzentado, é também um protagonista nesta história e a fotografia de Luiz Armando Arteaga entrega com precisão a falta de brilho e cor para as cenas mais externas. Mas reparem como que o universo de Tiquinho contrasta o mundo cinza de Cubatão, com suas cores vivas, em especial a do vermelho e do colorido das luzes que piscam e giram, espalhando matizes bem mais amplas aos ambientes que emanam o conservadorismo. Mas o diretor de fotografia vai muito bem ainda nas cenas da igreja evangélica, a marcando com uma iluminação ilusória e artificial.

Carolina Markowicz sempre dá atenção a determinados territórios em seus filmes. Em "Carvão", o ambiente humilde típico do interior é o que predomina, mesmo que este não seja nomeado. Em "Pedágio" é diferente, o território é o de Cubatão e arredores, com a sua combinação esdrúxula de uma vida industrializada ao lado de uma mata atlântica intacta, um contraste realmente assustador. Mas o que quero sublinhar é como Markowicz busca narrar histórias em lugares esquecidos, onde parecem não existir para a maioria das pessoas que moram nos grandes centros urbanos. Mostrar a vida de pessoas que habitam nesses territórios têm uma parcela enorme de vontade política de retratar vidas que estão invisibilizadas no mundo, e de lhes conferir subjetividade, de ir para além do mero registro objetivo ao trazer à luz corpos esquecidos e periféricos. Essa atitude é de uma beleza sem par. Suelen e Tiquinho são de carne e osso, feitos de sonhos, apesar do cotidiano brutal. Sobreviver para eles é uma arte que o nosso povo conhece muito bem.

E vamos combinar, nesse mundo cinza, insosso, poluído e sem graça que é Cubatão, Tiquinho é um sabor à parte. O desenho que Kaun faz do personagem é admirável, como ele dosa fantasia e realidade às vezes na mesma cena. O universo queer do personagem é uma porta para um mundo que ele pretende e faz ser glamourizado. Mas como ser um corpo destoante em um meio onde a heteronormatividade dá o tom e se impõe pela repressão, por meio de risadas e zombarias, como os colegas de trabalho de Suelen que mostram a ela os vídeos afeminados que filho  divulga nas redes sociais.  

É no tom farsesco que Carolina Markowicz adentra nesta história, rindo da obsessão conservadora de acreditar na tal absurda cura gay. Markowicz sequer chega a citar discursos homofóbicos de políticos como Marco Feliciano para ridicularizar o tema. O faz na própria história, na efetivação inócua de quem encara a empreitada de crer que tal ato da cura existe. Isso é realmente fantástico, como a diretora vai direto ao assunto, sem inserir elementos a mais, ainda mais que todos nós sabemos de onde vem esses horrores, afinal, ninguém esqueceu os últimos seis anos da mais completa irresponsabilidade política que vivemos no país desde o impeachment da Presidenta Dilma Rousseff. Está tudo ali, sem mesmo precisar ser mencionado.

Há um poderoso componente político também na trilha musical de "Pedágio", em especial quando Tiquinho performa ao som das divas do jazz americano. Nesses momentos musicais se instaura uma atemporalidade que é extremamente política. São divas que agregam temporalidades e territórios diversos, embora igualmente opressores. O que Markowicz faz é resgatar a voz resistente dos negros norte-americanos que cantavam em boates e clubes, mas que fora deles, eram discriminados pelo racismo que imperava nos anos 1930 e 1940 nos Estados Unidos, que sofriam com uma pesada segregação racial, como já foi mostrada em vários filmes. 

A personagem Suelen merece aqui um comentário à parte, por ser uma protagonista fantástica, complexa, cheia de nuances. Eu a vejo como uma mulher simples, que podemos encontrar em qualquer esquina da vida, batalhadora, honesta, mas que pressionada pelos padrões rígidos da sociedade, que não aceita a homossexualidade do filho, a empurra para o preconceito por puro amor ao filho. É muito delicado como Carolina Markowicz e Maeve Jinkings constroem essa personagem. Elas mostram como os fatos delineiam a sua vida e como a dureza do cotidiano a massacra como mulher. A amiga evangélica (uma Aline Marta, hilária de doer ) a pressiona, esta sim hipócrita, por defender publicamente um casamento de quase 40 anos, mas na surdina, pelos matagais perto do pedágio faz sexo com diversos motoqueiros, às vezes com três no mesmo dia. Quando Suelen aceita entrar no esquema de roubo do ex-namorado, o faz por amor ao seu filho e por acreditar que ele é um corpo desviante e também por temer o quanto irá sofrer socialmente como um corpo gay. Tiquinho jamais duvidou do amor de sua mãe e isso fica evidente em todas as cenas do filme. 

As aulas de cura gay, ministradas por um pastor estrangeiro são hilárias ao mostrar explicitamente métodos ineficazes para se curar algo, que como a maioria sabe, não é uma doença. A ideia de opção sexual se confronta com a de orientação sexual, o que torna o curso do pastor uma comédia só. Pênis de cera sendo transformados em vagina e vaginas de cera sendo transformadas em pênis. A fragilidade do método se desfaz tanto quanto esses objetos que vemos em cena. Mas o curso não é de todo mal, pois afinal pode funcionar como uma forma de tinder. É no encontro de Tiquinho com um colega de curso em que temos diálogos preciosos e hilários: "nem toda bicha quer ser diva" é um deles. Outra frase maravilhosa é uma dita pelo pastor: "o ânus é o antro do mal e o antro de bactérias". 

Sim, "Pedágio" é um filme sem excessos, no ponto certo, narrado filigranamente em todos os seus detalhes. É um filme rico nas interpretações, e Markowicz prova que Maeve Jinkings é capaz de fazer tipos populares como poucas atrizes o fazem, talvez como só Fernandona sempre soube fazer no auge de sua majestade cinematográfica. Maeve é uma diva dos novos tempos, basta assistir aos filmes que ela interpreta, ou simplesmente os dois que Carolina Markowicz a dirigiu. 

"Pedágio" é um filme múltiplo em sua concepção. Ele esbarra na vida como ela é, em lugares esquecidos pela humanidade e consegue dosar o realismo mais brutal com as esperanças que nos alimentam, com afetos e sonhos sugados do próprio cotidiano aviltado que somos submetidos por um sistema patriarcal, preconceituoso e imoral. As cores de Tiquinho funcionam como um pedágio de uma felicidade que pode e deve existir, mesmo quando o cinza grita a sua volta. Por isso, "Pedágio" é uma dádiva de cinema e vida ao mesmo tempo.              

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