Texto de Marco Fialho
"O mineiro só é solidário no câncer!" (Nelson Rodrigues, ou seria Otto Lara Resende?)
O primeiro fato que eu quero deixar registrado acerca de "Carvão", excelente longa de estreia de Carolina Markowicz, é o da indeterminação do lugar. Note bem, digo do lugar, não do espaço. O espaço é bem característico de tantos outros facilmente encontrado pelos rincões Brasil afora, demarcado pela pobreza e por um existir afetado pela rotina dura do trabalho, aqui no caso específico, a de uma família que sobrevive da carvoaria. Agora, o lugar não sabemos qual é, pois a diretora não o nomeia em nenhum momento, embora possamos reconhecer ali um Brasil profundo, recôndito, que passa ao largo dos grandes interesses políticos. Será mesmo? "Carvão" nos faz lembrar o quanto somos complexos e emaranhados, por mais que as aparências nos façam crer ao contrário.
Sim, mas o que então este espaço entregue à própria sorte poderia encontrar com o restante do Brasil ou até mesmo com o poderoso mundo? É nesse ponto que "Carvão" entrega seu melhor, na articulação das partes com o todo, em mostrar o quanto questões urbanas possam contaminar os lugarejos mais distantes e abandonados pelo poder público (que quando aparece, no caso da enfermeira, não é para uma utilidade propriamente pública). O filme é sobre essa relação entre um traficante argentino de um grande centro que trabalha pouco e ganha muito e uma família humilde que trabalha muito e ganha pouco. Essa equação desigual é que possibilita acontecer a corrupção. "Carvão" é também sobre a perversão do dinheiro, sobre a infelicidade da miséria que nos faz aceitar até o absurdo. Não bastasse ser ele o responsável pela humilhação diária pela ausência, ele surge ainda como elemento corruptor, capaz de despertar contradições no ambiente familiar, onde o aparecimento de uma simples bola de futebol pode ser a comprovação disso. Me fez lembrar da máxima que Nelson Rodrigues ironicamente imputou a Otto Lara Resende em relação ao poder do dinheiro: "O mineiro só é solidário no câncer!". E o dinheiro também instaura um jogo que se sintetiza em "eu lhe dou ele e você me faz isso". Por isso o dinheiro é obsceno e cruel, ele impõe a morte de uns e a "vida boa" de outros. Ele faz isso com o gringo e faz o mesmo com os carvoeiros em "Carvão".
Mais do que um filme que resolva pensar novas estruturas narrativas ou cinematográficas, "Carvão" é uma obra da ação. Não há tempos mortos no filme, embora Carolina Markowicz entregue quase tudo pelas próprias imagens e creio serem elas as mais relevantes quando pensamos nos pontos fortes desse roteiro. Há uma racionalização da ação do filme e um equilíbrio entre o que é dito e visto. Mas insisto, o que conduz a trama é a ação dos personagens e sua relação com o dinheiro. Primeiro pela diretora construir realisticamente o ambiente humilde da casa, com cômodos bem fidedignos ao universo retratado. Os dois quartos, o do menino e o dos pais dizem muito sobre a vida carente e depauperada deles, assim como a sala, a cozinha, o banheiro e as partes externas tomadas pelo chão de terra. Outra característica imagética do filme está na direção de arte que se esmera por transformar a imagem dos atores, que trazem no rosto sujo e nas roupas quase andrajosas a marca da vida difícil de quem pega pesado no trabalho.
Um outro pilar que sustenta a narrativa de "Carvão" são as atuações do elenco principal, composto por atores experientes no cinema como Maeve Jinkings, Rômulo Braga e o argentino César Bordón. Porém, todo o elenco está ótimo e colaboram para sustentar as ações, como a excelente Camila Márdila como a astuta e enxerida vizinha Luciana, e Jean de Almeida Costa como Jean. Maeve faz uma Irene perfeita, com gestos estudados e naturalizados, longe dos papéis que a popularizaram no cinema como em "O som ao redor" (2012). Sensacional e hilária a cena em que Luciana visita Irene para descobrir se a família dela participava igualmente do mesmo esquema financeiro.
A personagem Irene é a grande protagonista dessa história e a força narrativa de Markovicz se assenta no desenvolvimento dessa personagem, que se substancia como o elo entre todos os outros personagens da trama, além de ser a grande líder da casa. Maeve constrói Irene com uma força contida. Há nela uma insatisfação sexual com o marido que com o desenrolar do enredo acabamos por descobrir do seu porquê, e que transparece na relação dela com o gringo invasor. A sexualidade é algo especial em "Carvão", e por vezes ela é explícita e inesperada, e por outras até disfarçada. E há um dado mais incrível ainda, o da relação entre dinheiro e sexo, onde uma motocicleta surge como um presente bizarro nesse contexto.
A potência de "Carvão" está em como Markowicz consegue inserir aquele microcosmos e seus modestos personagens no mundo. Creio que "Carvão" existe para valorizar a vida em todos os seus buracos. E mostrar que cada vida é uma imensa preciosidade. Rapidamente nos afeiçoamos a Irene e Jean (um personagem riquíssimo diga-se de passagem) e nos distanciamos do gringo que está ali a comprar a todos. E não esquecer de que o dinheiro está ali a perverter a todos. Sim, "Carvão" corrobora a ideia de que até a pobreza pode ser comprada e subjugada, para além das relações já existente de submissão no plano do trabalho. Não casualmente, o lugar é indeterminado, embora as pessoas não o sejam, e isso é que faz a diferença em "Carvão". A impessoalidade do dinheiro mexe com a vida de pessoas de carne e osso, com inspirações e objetivos de vida os mais variados, além de provocar mortes a pessoas queridas. E o pior, é que nós sabemos disso. E Nelson Rodrigues, nós nem precisamos dizer, certo?
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