Texto de Marco Fialho
Quando lemos a sinopse de "Eu sou Maria", dirigido por Clara Linhart, enxergamos temas importantes que poderiam gerar debates cruciais para o país, como o racismo, as profundas desigualdades sociais, o acesso à educação, o amor interracial e o protagonismo preto nas artes. Só que o filme em si aborda os temas de maneira bastante equivocada e o leva para mesmices e superficialidades. Por isso começaremos a nossa análise pela história propriamente dita, deixando as opções artísticas para o fim.
Maria é uma adolescente preta, moradora de uma favela e que sonhar em estudar em um colégio da elite carioca. Esse sonho de ascensão social pelo estudo é uma aspiração para lá de legítima. Mas a maneira como Clara Linhart decide contá-la parte de estereótipos e sob uma ótica pouco reflexiva. Não se questiona em nenhum momento os mecanismos que geram essa desigualdade social, e assim a sociedade para ser algo imutável e a maior tarefa de Maria é a de se adequar ao quadro existente. O caminho escolhido de inclusão por meio de uma bolsa de estudo oferecida pelo colégio, como opção de acesso a uma melhor escolaridade, poderia ser um tema importante, mas essa discussão se perde. Quais seriam os caminhos de acesso além deste? Existem as cotas públicas e outras opções mais fáceis do que a escolha realizada por Maria de prestar um concurso que a deixaria inferiorizada frente aos alunos privilegiados e ricos de Botafogo, já que estudaria ali por uma concessão financeira da escola.
Clara Linhart esquece o principal, que tanto a sua história quanto o do próprio território abordado foram construídas. Quando a diretora parte da ideia que a favela é a favela e faz parecer que sempre foi assim, e o mundo abastado da Zona Sul sempre foi o mesmo, tudo se encaminha para um certo imobilismo e de aceitação do mundo tal como ele é. Quando Maria aceita o convite para morar por duas semanas na casa de um amigo e paquera da escola para ajudá-la em um tal reforço em matemática, e eles iniciam um namoro, abre-se caminho para que uma ascensão aconteça, não pelo estudo, mas por meio de uma relação amorosa interracial que poderia levá-la a uma outra condição social, o que contradiz o próprio discurso da trama dela acreditar que venceria pelo estudo.
Se a princípio tudo parecia ser tão penoso e beirando o impossível para Maria, como o foi para outros dois estudantes bolsistas, Clara Linhart escolhe um caminho para ela muito confortável, pois tudo se resolve como um passe de mágica, desde a aceitação tanto por parte do pai do estudante (a ideia seria dele inclusive) e da mãe que só aparece na história para que os jovens passem à noite em sua casa, durmam no mesmo quarto e possam consumar o ato sexual interracial, o que reforça uma salvação de classe pela benevolência de uma família de brancos generosos e compreensíveis.
Não bastasse todos esses equívocos na própria construção do roteiro, "Eu sou Maria" traz uma visão cinematográfica bem complicada. Talvez para atrair um público já familiarizado com uma proposta audiovisual pré-existente, a diretora opta por narrar a história de Maria como se fosse um seriado televisivo, aos moldes de uma "Malhação", o que faz os planos serem os mais certinhos possíveis, com enquadramentos rígidos, e uma fotografia excessivamente lavada, sem nenhuma nuance de sombras ou cor. E o que dizer dos diálogos forçados e previsíveis? A direção quer passar uma imagem realista, mas na prática tudo é tão límpido que a atmosfera fantasiosa prevalece sobre a própria sensação de realidade.
Ao tratar dos temas sem aprofundá-los, "Eu sou Maria" perde a oportunidade de questionar os mecanismos históricos que não só levaram como mantiveram as camadas mais pobres na exclusão. Adentrar nesse mundo dominado pela desigualdade social sem indagá-lo ou pô-lo na parede em nada contribui, pelo contrário, apenas salienta a existência desse mundo tal como ele é. Maria se insere nesse mundo dos brancos privilegiados, sofre preconceitos, mas aprende com eles a falsidade, o bullying, as práticas interesseiras e com essas mesmas estratégias colabora na expulsão de um aluno rico e mau-caráter. Os personagens carecem de nuances, uns são maus outros bons. Maria quando pratica o mal é visando o bem coletivo, assim, sua maldade é suavizada pela intenção do bem. Mais rasteiro impossível. Uma pena, porque a atriz Núbia Mauricio merecia uma personagem mais bem construída, para melhor mostrar o seu talento e carisma que saltam da tela.
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