Texto de Marco Fialho
O primeiro equívoco que pode ocorrer em relação a "O Assassino", novo filme de David Fincher, é considerá-lo simplesmente como um filme sobre um matador de aluguel ou algo do gênero. A rigor, o que o diretor está construindo, plano a plano, é o perfil de um homem sem humanidade, que pelo seu ofício precisa abrir mãos dos atributos humanos mais essenciais. Não à toa, o protagonista não tem nome (ou melhor, tem vários nomes), e insiste em ficar repetindo roboticamente tanto as características que precisa ter quanto as que não precisa ter.
O mais interessante nessa proposta de construção de personagem adotada por Fincher é o de nos interrogar permanentemente sobre o quanto alimentamos em nós alguns atributos inerentes ao assassino, daí a repetição ser tão eficaz e incorporada à narrativa. Assim, podemos dizer que o filme de Fincher é sobre os processos que levam as pessoas a deixarem de serem humanas para poderem sobreviver no inferno que é a vida em sociedade, além de mostrar um pouco do funcionamento das esferas mais camufladas do poder.
Justamente por explorar o aspecto desumano do assassino, que Fincher opta por narrar sua história sublinhando o distanciamento entre nós espectadores e o personagem. Há uma visível frieza na construção dos planos, nunca somos chamados a torcer pelo assassino, apenas acompanhamos sua saga desde o erro fatal que comete, passando pela tentativa de assassinato de sua esposa (Sophie Charlotte) até a perseguição que faz dos executores e mandantes dessa tentativa de homicídio. Fincher está a pensar sobre o apagamento que a sociedade faz de cada uma das pessoas do mundo, perante os milhões e bilhões que existem espalhados pela Terra, condenados à indiferença e ao anonimato.
"O Assassino" não está para enaltecer o seu protagonista, não é isso que Fincher faz, apenas o expõe, disseca seu método, mesmo que para isso tenha que enfatizar repetições. Apesar de que não são repetições de ações e sim de um processo de internalização, onde o assassino precisa incorporar e naturalizar um modus operandi, uma maneira inequívoca de realizar o serviço. Fincher salienta a invisibilidade de um ser que vive nas bordas do sistema, entretanto, crucial para que o mundo continue tal como ele é: indiferente e sem empatia.
Logo no início, Fincher aguça o nosso pensamento por meio de uma sucessão de planos fixos, com cortes tão secos quanto o próprio personagem de Michael Fassbender. O suspense de "O Assassino" vem de uma história que vamos descobrindo no decorrer da própria ação, tal como é na vida, que não sabemos o próximo passo vamos dar, mesmo quando achamos que estamos no controle da situação. Não nos é permitido conhecermos as vítimas que se seguem, em um jogo tipicamente capitalista, onde precisamos ser frios e agir no mundo apenas pela nossa sobrevivência. Sempre tem um personagem a mais nesse mundo impessoal no qual pouco importa o humano.
E Fincher assim arquiteta o seu personagem, como uma máquina que precisa sobreviver no inferno, tal como todos nós. Talvez, essa seja a maior dificuldade de assistir a "O Assassino", a de se ver refletido no personagem de Fassbender, de ver como o sistema usa e abusa de cada um, o quanto descarta gelidamente como uma peça quebrada que perdeu a utilidade. Mais do que o ato em si, o que interessa em "O Assassino" é o que vem antes e depois, é a sistemática e o padrão que nos leva a repetir as frases de sobrevivência que aqui tão bem lembram aquelas de autoajuda, que se proliferam pelas redes sociais da vida e em livros escritos para aliviar os tormentos de uma sociedade que nos escraviza e nos retira a saúde mental.
"O Assassino" precisa ser pensado para além da superfície de sua história, pois o que Fincher quer é nos interrogar a partir de um ser desprezível, mas o aborda como um homem com características bem demarcadas, e de certa forma, como um típico homem da sociedade de consumo. A mesma sociedade que o emprega, também contrata uma secretária, ou qualquer outra função laboral. Todos são peças de uma engrenagem funesta. Fincher apresenta seu protagonista em uma voz over vinda do próprio, embora a sensação é de que ele fala em terceira pessoa. Isso é proposital, visivelmente a fala dele não é somente para ele, serve para todos nós. As leis daquele mundo servem para todos os outros. O mundo é cão para todos. Tanto que um grande momento do filme é quando Fassbender encontra a personagem de Tilda Swilton (em uma interpretação impecável, como sempre aliás), também uma matadora profissional, e a conversa deles é reveladora, pois ele é obrigado a ouvir muitas verdades sobre o trabalho deles.
A apresentação do personagem realmente é longa (20 minutos), mas muito necessária por expor exemplarmente sobre o que o filme vai dissertar. Atentem como o assassino está a falar sobre o instantâneo do mundo, do caráter etéreo das relações e de quanto fomos assimilados pelo mundo do consumo e nos tornamos descartáveis. O mantra do assassino deve ser pensado enquanto uma cantilena típica do mundo capitalista, individualista, egoísta e automatizado. O que seríamos sem os aparelhos eletrônicos, já que os suportes tecnológicos hoje são tão humanizados? Para que sermos humanos, se agora as máquinas já o são, ou pelo menos simulam que o são?
O filme de Fincher é sobre isso, o assassino é só um bom exemplo de onde esse sistema onde a grana manda pode chegar, como é possível consumir até a morte alheia, desde que a indiferença ao outro esteja introjetado na cultura e no cotidiano de uma sociedade. Esse é um mundo que permite a existência desses fantasmas, desses parasitas especializados em matar. Inclusive é bastante curioso como Fincher insere no roteiro diversos dados estatísticos, uma preocupação em quantificar mesmo. As unidades do Mc'Donalds em Paris são quantificadas, os nascimentos e as mortes anuais também. Para o diretor, esse é um mundo onde a estatística é sempre colocada à frente das pessoas. A estatística é mais uma forma fria de discursar sobre o coletivo que o filme incorpora à narrativa.
Creio que Fincher coloca o dedo numa importante ferida, cria, por meio do assassino, um espelho de uma sociedade cruel, hipócrita e violenta, toda voltada para manter os mais ricos no poder. A repetição é uma maneira de fixar uma sentença assentada pelo equívoco. Repetir para se aprender o erro, ou então, para naturaliza-lo: "Atenha-se ao plano. Antecipe, não improvise. Não confie em ninguém. Nunca forneça uma vantagem. Lute apenas a batalha pela qual é pago para lutar. Esqueça a empatia. Empatia é fraqueza. Fraqueza é vulnerabilidade. Em todo e a cada passo do caminho, pergunte-se: o que ganho com isso? É isso o que deve se comprometer a fazer se quiser ter êxito." Fincher sabe o que quer atingir e o faz com eficiência. É soberbo, quando ao final, o diretor reafirma a participação do assassino/público no jogo do poder. São estruturas baseadas na violência, mas vendidas (literalmente) como dialógicas e acessíveis a todos, embora sempre atenderão a uma minoria que controla o dinheiro e o poder.
O filme não é apenas sobre o assassino, é também sobre nós, sobre a nossa permissividade e complacência com o sistema. O assassino é um espelho de nós enquanto coletividade, por isso creio que ele pode chocar tanto as pessoas, pela constatação que nos deixamos assimilar, por mostrar a nossa frieza como indivíduos imersos no mundo contemporâneo.
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