Por Marco Fialho
Nise da Silveira
O grande trunfo do documentário "Deixa que eu falo", de Eduardo Escorel, é o de conseguir edificar um discurso ontológico do cineasta Leon Hirszman. Com isso, o resultado é magnífico ao mostrar que a grandeza do cinema de Leon era uma extensão do homem Leon. Claro que essa afirmação pode caber em qualquer outro cineasta, embora o que pretendemos construir aqui é a integridade homem/obra. Isso quer dizer que Leon era cineasta 24 horas do dia e todas as suas ações e falas possuem inteireza e consequência. Mesmo quem não viu um filme sequer dele, cena a cena vai se apaixonando pela entrega e coerência desse cineasta/homem genial. Genial aqui significa muito, afirma o compromisso de Leon com um projeto coletivo, de um indivíduo capaz de potencializar esse coletivo.
As duas primeiras sequências do filme são bastante significativas. A primeira mostra o último plano filmado, com a psiquiatra Nise da Silveira, e na segunda vemos o nascimento do filho Pedro. Em ambos o grito da vida vem com uma força irrefreável. Escorel, montador experiente e talentoso, talvez pensasse na morte prematura de Leon aos 49 anos, na reafirmação de uma vida vivida intensamente. Uma vida irmanada com o cinema, e essas duas sequências iniciais dizem exatamente isso.Escorel demonstra ser um diretor com o conhecimento profundo do ser Leon, tem consciência que para falar do cinema dele precisava dar-lhe um painel amplo e profundamente humano. Quando fala de Nelson Pereira dos Santos não está a descrever apenas o cineasta, mas o homem comprometido com a vida e o coletivo, fala de um mestre, um exemplo de arte e vida. Assim foi Leon, um cineasta engajado, sem tergiversar e pestanejar quanto os temas mais latentes para o país, porém sempre atento à forma artística.
"Deixa que eu falo" vai entremeando falas de Leon e amigos a trechos de seus filmes, mantendo um esforço de organização cronológica. Como vários artistas da geração que produziu nas décadas de 1960 e 1970, Leon também fez faculdade (de engenharia) para não exercer a profissão, porque a paixão pelo cinema já ocupava as atenções e já o tinha inoculado. Ainda na faculdade, por meio do CPC (Centro Popular de Cultura) da UNE (União Nacional dos Estudantes), realiza o curta "Pedreira de São Diogo", em 1962, um dos episódios que compõe o clássico "5 vezes favela" (junto com Joaquim Pedro de Andrade, Marcos Farias, Miguel Borges e Cacá Diegues), um dos núcleos formadores do Cinema Novo, o mais influente movimento cinematográfico dos anos 1960.Bom lembrar que os anos 1960 são marcados por grandes conflitos políticos e sociais no Brasil, tanto no universo urbano quanto no rural. Leon não passará alheio à época e ostentará nos três primeiros filmes uma evidente consciência de classe: "Pedreira de São João", "Maioria absoluta" (1963) e "A falecida" (1965). Talvez a única trégua de Leon seja com "Garota de Ipanema" (1967), talvez o mais inconsistente trabalho dele no cinema e sem o compromisso social que sempre marcou sua trajetória. Dentre as influências mais notórias desse início de carreira pode-se citar o cinema russo (Eisenstein e Vertov) com as complexas teorias de montagem, e o neorrealismo italiano, que revelava nos filmes uma contundência temática social, retratando sempre histórias de personagens populares. Filmes diretamente políticos, como o documentário "Maioria absoluta" que retratava o drama dos miseráveis trabalhadores rurais analfabetos, alijados do processo eleitoral brasileiro, direito este só conseguido em 1985. O filme mesmo, só foi liberado para exibição em 1983, dezoito anos após a sua realização.
Leon também sempre se interessou muito pela chamada cultura popular, em especial o samba, tendo filmado dois curtas dedicados ao tema: "Nelson Cavaquinho" (1969) e "Partido Alto" (1982), com Candeia e outros sambistas. Esses dois filmes são realizados nos universos onde transitam os personagens, eles traduzem poeticamente a vida dos artistas retratados, uma ode ao samba e a seus compositores. Para Leon, a afirmação da cultura popular se contrapunha à opressão dos donos do poder. Ainda tem os três curtas filmados entre 1974 e 1976, que fez dedicados aos cantos de trabalho no interior da Bahia, que trazem também um viés político coletivo ao ambiente cultural, como ele sempre gostava de frisar em suas obras. A preocupação com o Brasil está presente a todo instante e se reflete em todos os filmes de Leon. O inconformismo com as desigualdades sociais no país incomodou Leon até o fim da vida. Em 1972, já com 35 anos, Leon demonstra um grande amadurecimento artístico ao adaptar para o cinema "São Bernardo", o clássico literário de Graciliano Ramos. Junto com "Eles não usam black-tie" (1981), "São Bernardo" é uma obra-prima inconteste do cinema, um trabalho cuidadoso, milimétrico, que estabelece uma relação em pé de igualdade com o livro. Leon preserva o ritmo e a narração pessoal do protagonista, um trabalho potente sobre a ganância, a alienação do homem e a violência contra a mulher na sociedade patriarcal brasileira. Eduardo Escorel acerta muito na montagem de "Deixa que eu falo", em especial na maneira como ele situa "Eles não usam black-tie" tanto na carreira quanto na vida de Leon. Ele começa o seu momento mais ativista e o processo de pensar o filme inicia-se em 1979, concomitantemente com as greves dos metalúrgicos do ABC. Habilmente, Leon incorpora essa cena política ao filme e essa força está visível para quem o assiste. Leon está no auge, a clarividência da visão política e social do cineasta salta aos olhos e a essa altura ele também é uma liderança cultural no Brasil. Escorel nos brinda com um depoimento fantástico de Leon sobre o filme, onde enfatiza a necessidade de explorar as contradições da classe operária, ao invés de simplesmente endeusa-la como fenômeno em si. Assim, Leon valoriza o realismo da história, seus conflitos e a complexidade dos personagens. Com a morte precoce de Leon, em 1987, várias de suas obras foram montadas e lançadas postumamente. Caso do fundamental estudo "Imagens do inconsciente" (1988) e "ABC da greve", filmado ainda sob o efeito das filmagens de "Eles não usam black-tie". O projeto "Imagens do inconsciente" traduz e sintetiza muito da personalidade de Leon. Vivíamos em meados dos anos 1980 um processo de redemocratização no país, o pensamento e a postura dele era não só valiosa como significativa (e ainda continua profundamente atual) de não deixar ninguém para trás. Ele se referia aos chamados "loucos". Um projeto com Nise da Silveira não era aleatório, ainda mais porque nada em Leon acontecia dessa forma. Pode parecer desimportante, mas não era. Esse era mais do que um detalhe, era um filigrana a descortinar quem era Leon, de como ele pensava amplamente o coletivo. Uma aula de vida por meio da arte.Visto na plataforma do Festival Estação Virtual, em 18/05/2021
Cotação: 5/5
Excelente comentário...dessa vez você Marco Fialho.se superou.curiosa para assistir
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