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O VENTO QUE ARRASA (2023) Dir. Paula Hernández


Texto de Marco Fialho

"O Vento que Arrasa", dirigido pela cineasta argentina Paula Hernández, a mesma dos ótimos "Chuva" (2018) e "Herência" (2001). Nesse novo trabalho, a diretora tem como central a relação entre a jovem Leni (Almudena González) e Pearson (Alfredo Castro), seu pai. Ele é um Pastor evangélico desgarrado, que vai de aldeia a aldeia pelo interior da Argentina e Brasil pregar o evangelho, enquanto ela atua como uma espécie de assistente dele. Inicialmente, Paula conduz a trama como um road movie, um típico filme de estrada latino-americano. A história é adaptada do livro homônimo de Selva Almada (que não li e sequer conhecia antes do filme). 

No decorrer da história, vemos que Leni realmente se torna a grande protagonista do filme, pois o ponto de vista que Paula Hernández assume é visivelmente o dela. Pode-se dizer que "O Vento que Arrasa" é sobre o processo de libertação dessa jovem, que está a adentrar no mundo adulto, e o pai, de certa forma, torna-se um empecilho ao seu crescimento. Leni, durante as viagens percebe o que existe um mundo maior e que aquele propalado pelas palavras do pai não dá conta. 

Paula Hernández constrói essa ideia de amplitude em torno de Leni aos poucos, em cenas pequenas e aparentemente aleatórias, como a que ela vai pedir a um dono de loja de fitas K7 para fazer cópias do discurso do pai e fica atraída pela música pop e pelas bandas de rock e funk que tocam na televisão do estabelecimento comercial. Leni chega a comprar escondido algumas dessas fitas, para ouvir sem o conhecimento do pai. O uso dessas tecnologias, também revelam que o filme provavelmente se passa lá pelos anos 1980, inclusive pela presença de um walkman, aparelho que reproduzia uma fita K7 por meio de um headphone acoplado por um cabo. O carro azul antiquado do pai (de uma marca que não existiu aqui no Brasil) também ajuda a entregar a época na qual a história do filme transcorre. 

O Pastor Pearson em suas peregrinações gostava de transitar pelas regiões fronteiriças, ora do Brasil ora do Uruguai. "O Vento que Arrasa" passeia igualmente pelos limites das relações humanas, dessas passagens provisórias por vilarejos e pequenas cidades, com cultos exaltados sustentados pela crença dos fiéis nas palavras entusiásticas de Pearson. A palavra em "O Vento que Arrasa" é algo muito presente, embora tudo o que não é palavra talvez tenha um papel fundamental para se ampliar a visão nossa sobre o filme. Algumas imagens são cruciais, assim como a maneira em que Paula Hernández movimenta a sua câmera pelos expressivos rostos dos personagens. 

A fotografia quente, com prevalência do vermelho e do tom alaranjado diz muito sobre as emoções latentes que esse filme carrega, mesmo que algumas estejam contidas, como várias cenas de Leni, um vulcão prestes a entrar em erupção. Paula Hernández primeiro explora mais a figura do Pastor Pearson, para só depois começar a revelar quem realmente era Leni e seus sentimentos sobre o mundo. Mas essa vermelhidão encaixa com o calor insuportável que emana da tela, as sudoreses exaladas constantemente pelos personagens.   

A diretora começa a virada na história justamente quando o radiador do carro de Pearson vai para o brejo e os leva até o isolado ferro-velho de Gringo e seu filho Chango ou José Emílio. Agora, os nômades Pearson e Leni terão que ficar por praticamente 24 horas e as relações serão mais intensas, não só com os anfitriões como entre pai e filha. Chango é um menino socialmente prejudicado por uma deformidade facial e absorvido como mão de obra barata para o pai. Pearson o seduz com as palavras do evangelho e cria uma nova tensão nas relações. No filme temos então dois processos de libertação: a de Leni e Chango, ambos jovens aprisionados pelos pais, e explorados como trabalhadores. 

O que seria então esse vento do título? Existe nele algo de dúbio? Creio que sim. Uma das interpretações plausíveis é que ele seja um simbólico do próprio Pearson, que devasta as almas das pessoas que cruza. Mas poderia ser ainda, contraditoriamente, a própria Leni, disposta a não mais se sujeitar as regras morais do pai. Em certo momento, Leni diz para ele: "você não é Deus ou Pastor, é o meu pai". Há uma cena catártica, muito bem filmada, em que Pearson resolve voltar da estrada para pegar o menino Chango, que inicia com ovelhas interditando a estrada e termina com uma luta braçal entre Gringo e o Pastor, tudo sob uma chuva intensa.   

Mas será que o pai acredita em tudo que diz, em todas as palavras que ele profere tão enfaticamente? Em uma conversa entre Gringo e Leni, o mecânico indaga algo pertinente e reflexivo: "o que seu pai fez para ser uma boa pessoa?" As dúvidas surgem e vemos joias dadas pelos fiéis se transformarem em dinheiro para ser gasto nas despesas do dia-a-dia. Em uma cena, Leni escuta rock dança freneticamente, mas depois arrasta os joelhos nos espinhos, como autoflagelação, para pagar o pecado de gostar de uma música dos infernos. É importante refletir sobre alguns detalhes simbólicos cruciais existentes no filme, como o fato do pai impedi-la de dirigir o carro e poder ir aonde bem quisesse.         

"O Vento que Arrasa" é um desses filmes argentinos em que a sensibilidade toma conta da tela e que consegue nos transportar para os dramas vividos pelos personagens, muito devido ao realismo que cada cena transpira. Esse é um filme feminino, com uma personagem que embora não fale muito, revela nos detalhes as suas ambições existenciais e o seu imenso desejo de libertação. Paula Hernández realiza um filme sobre esse processo de amadurecimento, em que cena a cena a autodescoberta implode em Leni como o tal vulcão que em algum momento entrará em erupção. É a natureza irrompendo com toda a sua força e necessidade. Isso é lindo e esperançoso de se ver.         

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