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SHOWING UP (2022) Dir. Kelly Reichardt


A beleza no minimalismo de Kelly Reichardt

Texto de Marco Fialho

"Showing Up", dirigido pela diretora Kelly Reichardt, que vem se destacando como uma das diretoras mais interessantes do século XXI, é mais uma mostra do seu talento para narrar pequenas histórias que transformam personagens comuns em pessoas especiais. Para isso, Kelly filma na pequena cidade de Portland, Oregon, um drama de uma artista chamada Lizzy (Michelle Williams) na tentativa de dar um salto em sua carreira como escultora. 

A diretora Kelly Reichardt mostra muita habilidade em explorar o cotidiano de Lizzy, conseguindo juntar toques de leveza e crueldade na trama. Esse equilíbrio narrativo é surpreendente e nos faz pensar muito no formato crônica como instrumento de narração, o de misturar uma descrição da vida rotineira de um personagem com pitadas ficcionais, o que provoca no espectador uma dupla sensação: a de realidade e a de mistério, pois algo mágico emerge daquela história ao mesmo tempo corriqueira e surpreendente. O filme é distribuído pela A24, famosa pelos filmes de terror mais audaciosos dos últimos anos.

Lizzy tenta conciliar a sua criação artística com os problemas do dia a dia, com os pais (que se preocupam mais com outros afazeres do que com ela), a vizinha Jo (Hong Chau), também artista, um gato e um pombo. Kelly consegue com esses poucos elementos retirar uma poética existencial em torno de Lizzy. As cenas transbordam sensibilidade e Reichardt vai nos aproximando cena a cena da protagonista, passamos a viver os seus problemas mínimos, como o de cuidar de um pombo que o seu gato feriu, ou com a fome de seu gato, que a obriga parar o trabalho para ir comprar ração. Essa mise-scéne de Kelly Reichardt é muito trabalhada para que tudo pareça simples e orgânico, quando na prática a sua realização é complexa, pois depende de toda uma compreensão dos atores perante os mínimos detalhes de suas ações frente a câmera.


Mais uma vez o trabalho de Michelle Williams é precioso. Impressiona como ela consegue a cada novo papel se transformar em uma identidade completamente diferente, indo em um piscar de olhos de Marylin Monroe até essa provinciana Lizzy. Ótimo igualmente o trabalho do elenco de apoio, com destaque para Hong Chau como Jo, Maryann Plunkett como a mãe, Heather Lawless como uma artista da localidade que aprecia o seu trabalho artístico. É sutil, mas sensível, o olhar de Kelly Reichardt para essas personagens femininas, em especial para Lizzy, uma artista flagrada em seu trabalho minucioso com o barro e as cores de suas esculturas predominantemente de figuras femininas. É assim que a diretora penetra no universo caótico de Lizzy, pelos mínimos cuidados que ela dedica ao que está a sua volta e na maneira como se relaciona com as personagens que gravitam em seu entorno.

A abordagem de Kelly Reichardt é precisa ao preparar toda a trama para um ápice, que seria a exposição das obras de Lizzy na galeria da cidade. Vivemos com Lizzy toda a angústia desse momento que precede o grande dia da vernissage, suas incertezas, inseguranças e traumas do passado, em especial os familiares, que parecem ecoar implacavelmente no seu cotidiano e na obra que faz. Essa é a saga de Lizzy por uma rotina comum e às vezes beirando até ao inútil ou mesmo ao intragável. Curioso como o filme de Kelly Reichardt levita entre a contemplação e o retrato do banal, e captura desse meio do caminho uma força extraordinária, para habitar um lugar que somente grandes diretores/as sabem como alcançar.   


O mais interessante na proposta narrativa de Kelly Reichardt é como ela amarra objetos e pessoas, que a princípio parecem pequenos ou banais na trama, mas que lentamente vai os ressignificando nos contextos apropriados, sempre com sutilezas que podem até passar desapercebidas pela maioria, mas que independente da nossa atenção dada a elas, estão ali cuidadosamente inseridas. A cena mais bonita e simbólica é a da libertação do pombo, quase no final do filme, em plena vernissage de Lizzy, que soa como a própria libertação dela como artista e como ser humano. "Showing Up" é um filme para se apreciar como observamos uma linda paisagem, com uma calma descompromissada com os afazeres diários, com o espírito livre, até ficarmos inebriados e extasiados por ela.        

Comentários

  1. Menos é mais ! Acredito que falou tudo, diferentemente de alguns outros críticos e cinéfilos que se entediaram com o filme de Kelly Reichardt. Gostei, valeu !

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