Resistir é preciso
Texto de Marco Fialho
"Memórias do cárcere" deve ser, dentre os filmes muito comentados do nosso cinema, um dos menos vistos pelo público. Talvez suas mais de três horas de duração colabore para isso, afinal, é difícil enquadrar o filme em uma grade programática de exibição. Até os lançamentos em mídias físicas, não foi um filme muito comercializado, lembro apenas de uma cópia especial do IMS (Instituto Moreira Salles). Nos streamings, mais recentemente ficou disponível para assinantes Globo Play e nada mais.
Mas "Memórias do cárcere" é um Nelson Pereira dos Santos inspirado, apaixonado pelo personagem de Graciliano Ramos, pela sua luta e coerência de princípios. A interpretação de Carlos Vereza é impecável, contida, mas profunda. Nota-se uma direção de atores muito cuidadosa, com Nelson construindo muito bem os personagens coadjuvantes, a começar pela esposa Heloísa, vivida por uma Glória Pires no começo da carreira, aos vinte anos de idade, mas já demonstrando um grande domínio de cena. Outra interpretação primorosa é a de José Dumont, como o provocador Mario Pinto, além de Jofre Soares com o seu cativante Soares. O elenco traz outras atrações como a do carismático Wilson Grey, como Gaúcho. E o que dizer de um jovem Tonico Pereira como Desidério, como um determinado líder comunista, ou de um inusitado e jovem Fabio Barreto como Siqueira Campos.
Esse é um filme de muitos filigranas, tecido com linhas muito definidas por Nelson Pereira dos Santos, um dos nossos cineastas mais talentosos e profícuos. Cabe registrar que nos anos 1960, Nelson já havia filmado "Vidas Secas", de Graciliano Ramos, o clássico literário que se tornou também clássico cinematográfico em 1962 , um ícone da primeira fase do Cinema Novo, pelas mãos desse cineasta exemplar e fundador que foi, que muito colaborou para trazer as influências do neorrealismo italiano para o Brasil.
"Memórias do Cárcere" inicia com Graciliano ocupando um cargo público como um tipo de Secretário da Educação em Alagoas e sendo muito pressionado em pleno Governo Getúlio Vargas, então um aliado da Alemanha nazista. Graciliano nega a política de favorecimento tão em voga no sistema burocrático e coronelista brasileiro de então, sendo perseguido implacavelmente pela oposição, ainda mais que era conhecida a sua veia esquerdista. Nelson constrói um personagem tomado pela correção e honestidade, chegando até ser inflexível nas relações interpessoais.
Essas cenas iniciais são as poucas em que vemos Graciliano Ramos solto. Depois, o que veremos é um filme de prisão e a trajetória desse homem culto e refinado nas masmorras da ditadura varguista. Saindo de um presídio para outro, o escritor acaba sendo transferido para o duro presídio de segurança máxima da Ilha Grande, onde ficou até a sua saída. Vale o registro de que "Memórias do Cárcere" foi filmado no final da ditadura militar que começou em 1964 e foi até 1985. Esse contexto histórico não pode ser negligenciado já que sabemos bem o que aconteceu nos porões do DOI-CODI e similares.
O filme de Nelson deixa evidente a cada cena o quanto era importante para ele adentrar na personalidade do escritor e se utiliza desse momento de privação para fazer um estudo dessa personalidade bastante peculiar, introspectiva e que aos poucos vai se relacionando com personalidades bem diferentes da sua. À crueldade dos algozes, Nelson constrói personagens vibrantes, dispostos à luta contra a ditadura varguista. Um filme que mostra a enorme capacidade humana para resistir quando estamos diante de regimes ditatoriais.
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