O dia em que Chico Buarque e Cacá Diegues reescreveram a Aquarela de Ary Barroso
Texto de Marco Fialho
"Bye Bye Brasil", dirigido por Cacá Diegues, é ao mesmo tempo um clássico e uma obra-prima do nosso cinema. Ele marca tanto as consequências de uma época que chamamos de "Milagre Econômico" (1968-73) quanto de um cinema pós-tropicalista, que compreende mais ou menos o mesmo período do milagre econômico. O filme pode ser visto como uma zombaria disso tudo, mas também como uma tentativa de analisar criticamente a complexa cultura brasileira, com a invasão cultural estrangeira em larga escala e da televisão como importante veículo de comunicação nacional, além de salientar as profundas desigualdades sociais existentes historicamente no Brasil.
A caravana Rolidei é comandada por Lord Cigano (José Wilker), um misto de empreendedor, artista popular e cafetão, e Salomé (Betty Faria), que por sua vez é um somatório de cantora, dançarina e prostituta. Eles viajam o país em busca de sobrevivência e fugindo das tais espinhas de peixe (as antenas de TV), símbolo do "desenvolvimentismo" brasileiro e que atrai a atenção do público, que agora se interessa mais pela telinha do que pelas apresentações ao vivo da caravana mambembe, acrescida pelo caminho pelo sanfoneiro Ciço (Fábio Jr.) e sua esposa grávida Dasdô (Zaira Zambelli), perfeitos personagens a representar o espírito dos retirantes que saíam da região quente e árida do nordeste em busca de uma vida melhor.
Cacá assim nos apresenta os personagens de "Bye Bye Brasil" e propõe uma espécie de road movie mambembe e atrapalhado de uma trupe de artistas em busca de mostrar sua arte popular pelos rincões mais afastados do país. Tal como novos bandeirantes, a caravana serpenteia o país a caminho de Altamira, cidade do Pará onde a grilagem e o extermínio dos povos originários estava em alta, graças à mineração clandestina e a prática do contrabando. Mas passava meio ao largo o desejo de exploração colonizadora, talvez a caravana Rolidei possa representar a grande contradição brasileira pós-tropicalista, o desejo de ser algo grandioso, pop, e com isso a aceitação do estrangeirismo e a devida mistura com elementos das raízes populares (forró) e indígenas.
O filme faz uma síntese cultural divertida, pois Lord Cigano é tudo, menos carrancudo, é prático, ambicioso e atento sobretudo à sobrevivência. "Bye Bye Brasil" é colorido, extremamente fluente e divertido, um modelo de cinema que consegue dialogar e interrogar o país. A política no filme está presente nos subtextos, nos diálogos afiados que Cacá destila pelos personagens, em especial pelo Lord Cigano, sempre arguto e com respostas na ponta da língua. José Wilker está soberano em cena, dominando como poucos a ideia de mise-en-scène, comandando a câmera que teima em seguir a sua astúcia e a beleza sensualíssima de Betty Faria, exuberante e sedutora, com uma comunicação direta com a câmera, representando com majestade e fitando com desejo o público. O sanfoneiro Ciço nada mais faz do que representar em cena o público e passa o filme todo seduzido por Salomé.
Não tem como assistir a "Bye Bye Brasil" sem se reportar na memória do filme de Jorge Bodanzky e Orlando Senna, "Iracema, uma transa amazônica", tem momentos que aquelas estradas barrentas se cruzam, que o personagem Tião (Paulo César Pereio) se encontra com Lord Cigano, Salomé, Ciço e Dasdô (inclusive na cena do parto). É o mesmo Brasil atônito com o desenvolvimento à moda de Fitzcarraldo, de inserir a modernidade na selva, em um projeto fadado ao fracasso desde o seu primórdio. "Iracema" trata desses momentos iniciais enquanto "Bye Bye Brasil" é um filme que chega um pouco depois para registrar o desastre pré-anunciado.
Cacá Diegues dedica profeticamente o filme aos brasileiros do Século XXI, talvez sabedor de que sua viagem pelas sertanias brasileiras revelava um país crescentemente dominado pela mídia. Evidente que a própria televisão perderia espaço para a internet, mas o fenômeno mediático em todo o caso está aqui presente, com mais contundência do que antes, basta ver qual é a presença do cinema brasileiro nas telas de cinema e do streaming. Nunca a cota de tela foi tão crucial e decisivo para o produto nacional. "Bye Bye Brasil" talvez registre as transformações vertiginosas do país e quando vemos o novo caminhão da caravana Rolidey (agora com y, "como éramos ignorantes", diz Lord Cigano ao reencontrar Ciço em Brasília, mais uma ironia capciosa de Cacá) o diretor quer nos dizer que precisamos nos adaptar aos novos, e célere, tempos.
A música de Chico Buarque, composta especialmente para o filme, está a todo o instante nos lembrando de qual lugar esse "Bye Bye Brasil" está a falar, como uma espécie de ente espiritual a nos pontuar sobre as falsas benesses que esse modelo capitalista nos vende: "No Tocantins, um índio do Parintintis, vidrou na minha calça Lee". A canção também registra uma conversa telefônica na qual a conversa vai mudando aleatoriamente, como se fosse uma televisão em que trocamos os canais a todo o momento. Há intrinsicamente uma aversão do avanço tecnológico, as antenas de TV são quase sempre protagonistas do filme, estão a demarcar mais um espaço já dominado, como se cada uma delas fosse um disco voador a chegar e demarcar um novo território ocupado. Visto com os olhos de hoje (2023) esse é um filme que descortina um processo que apenas se aprofundou, de interiorização do território, cuja maior vítima foram os povos originários. Acabar com a mata virgem (ouvimos isso no filme algumas vezes) é mexer no ecossistema desses povos, é pauperizar as suas condições de vida pela ambição da exploração de minerais e do avanço do agronegócio.
Creio que "Bye Bye Brasil", como o próprio título sugere, quer traçar um tipo de país em franco processo de destruição. Ao adentrar o país, o que o filme faz é constatar a dominação cultural e econômica, mostrar um novo modelo de colonização, mas o faz de maneira antropofágica e divertida, apesar que por trás dessa ironia paire uma certa melancolia baseada na sentença "nada podemos fazer para impedir os avanços". Sorrateiramente, fica implícito as negociatas que estão a pulular pelo país, o quanto nos tornamos o lugar dos espertos e trambiqueiros de ocasião. As cores e as luzes estão sempre a nos seduzir, a criar a ilusão de que estamos no caminho certo, afinal, como bem diz Lord Cigano, "o amor pode ser desorganizado, mas a putaria não, essa precisa ser muito bem organizada". Esse é o melhor retrato da história do nosso jovem e colonizado país, que ratifica o quanto "aquela aquarela mudou", como diz a canção de Chico. Mas será que aquela ficha já realmente caiu?
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