Texto de Marco Fialho
Uma das possibilidades instigantes presente no gênero documentário é o de trazer à luz temas e personagens importantes que muitas vezes estão à sombra do grande público. Esse é o caso de "Impermanência", do diretor Guto Neto, ao propiciar um mergulho no processo criativo do dançarino e coreógrafo Márcio Cunha. O filme de Guto é de uma sensibilidade tocante e inteligente na maneira de conduzir o personagem e de revelar o seu profundo trabalho.
Um das felicidades de "Impermanência" como documentário é o de abrir mão de tentar abarcar a vida e obra de Marcio Cunha, não se almeja aqui destrinchar detalhes da carreira, mas sim expor alguns momentos de seu processo, em especial a intensidade na qual o coreógrafo se entrega a cada espetáculo. Guto Neto consegue extrair de Márcio a sua essência como encenador brilhante que é, vai fundo no processo do artista em perscrutar a dor como exercício de amadurecimento pessoal, atribuindo a dor um sentido sensorial e como um momento dialógico dos personagens com o mundo. Assim, Márcio Cunha levou ao palco Basquiat, Frida Kahlo e Bispo do Rosário, artistas que viveram de suas dores, que a transformando em arte.
"Impermanência" consegue ir no cerne da carpintaria cênica de Márcio Cunha e explora muito bem suas habilidades de artista visual que também é ao construir instalações que interagem com ele no palco. O filme capta com vigor essa artesania do processo, além de registrar momentos em que o coreógrafo dialoga com sua equipe de figurinistas, produtoras e iluminadores. Guto Neto ainda flagra os ensaios corporais de Márcio Cunha, mostrando como incorpora ao corpo diversos processos de vida, músicas e tantos outros momentos de seu passado, seus medos, angústias e dores.
Dentre todos os processos que assistimos, há um destaque especial para a montagem da peça "Rosário", em que Márcio Cunha mergulha (literalmente) na vivência desse artista, morando na colônia manicomial de Bispo do Rosário e se relacionando com um interno que conheceu o artista. Márcio vive, a loucura, a incorpora corporalmente, em um processo muito complexo, marcado por uma intensidade fora do comum. Depois é mais incrível ainda ver o interno integrado a sua peça como um personagem real, o que mostra a coragem e a força cênica sem limites que Márcio Cunha vivencia sempre com plenitude. Me chamou a atenção a obra em que Rosário realiza um inventário do mundo para entregar para Deus quando ele retornar à Terra, esse aspecto humano de querer participar de algo grandioso e que só a arte pode sobejar. Mas nota-se o quanto esse processo de 'Rosário" é uma viagem em si mesmo e Guto Neto se mostra muito atento a tudo que cerca o seu objeto de estudo.
Um dos momentos mais brilhantes do filme é quando Guto Neto captura uma imagem do interno da Colônia Juliano Moreira a perguntar para a câmera: "quem é você?" Sim, porque o filme é sobre isso, sobre o processo de autoconhecimento de Marcio Cunha e Guto Neto, como diretor, percebe instantes valiosos que possibilitam se apreender melhor essa pergunta. Guto costura na edição algo muito representativo e recria a cronologia artística de Márcio Cunha sem ser didático, o que torna o filme instigante a todo momento. Há uma trajetória alinhavada nessa carreira, uma pesquisa implacável da dor nos três primeiros espetáculos: o de Frida Kahlo, o de Basquiat e o de Bispo do Rosário, e depois uma libertação desse processo, com o surgimento de uma fase que caminha para o solar e o popular, em especial a partir de "Homem de Barro".
"Impermanência" é um documentário encantador, que estabelece um diálogo potente com o artista e homem Márcio Cunha, suas dúvidas e coragem na arte, que se esforça em esboçar um certo ordenamento do processo, sem jamais aprisioná-lo em caixinhas definidoras ou definitivas. O filme se parece muito com o seu personagem, tem seus momentos introspectivos, suas buscas intensas, está impregnado da intensidade do coreógrafo, mas ao final é possível se ter uma ideia de quem é esse personagem e como ele se coloca para o mundo. Há uma consciência da impermanência da arte e do humano e a crença de que a ação artística é necessária como condição de vida. É a arte voando sem deixar rastros visíveis, diz Márcio Cunha quase no final do filme, porém o que fazer com os corações de quem presenciou toda essa força emanada por sua poderosa expressividade nos palcos? A existência desse documentário apaixonado de Guto Neto, de certa forma contradiz o próprio conceito de impermanência preconizada por Márcio Cunha, pois saímos dele contaminados por essa força artística, por esse desejo de grudar o mundo ao seu corpo. Ainda bem.
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