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ENSAIOS SOBRE YVES (2023) Dir. Patrícia Niedermeier (um ensaio)


Ensaiando a vida na arte

A melhor palavra para definir o filme "Ensaios sobre Yves" já está presente no próprio título: ensaios. E assim essa obra flui, como um rio de ideias que perpassam por margens criativas que proliferam livremente por entre cores, pensamentos, artes e movimentos. Aqui um encontro é estabelecido, um diálogo imaginado e imaginário de Patrícia Niedermeier com o seu guru artístico Yves Klein, morto precocemente aos 34 anos. Esse é um filme belíssimo, de alto impacto sensitivo, que propõe um pacto imersivo do espectador com um artista e uma cor, o conclama ao desafio de decifrar o indecifrável, de sentir a vibração emanada de um azul ultramarino, de reconhecer a essência da arte pela contemplação da monocromia, tendo o tempo e o silêncio da observação como uma poderosa chave poética de comunicação. Assim somos recebidos pelo filme, e simultaneamente sugados para nos afogar no misterioso mundo de Yves Klein, para sermos atravessados por ele, tal como um trem a cortar o céu até Nice, sua cidade natal, ou mesmo tal como o pincel que utilizou para transpor o azul e recriá-lo, dar a ele um outro significado, de ser algo muito além de uma mera cor, conferir a ele um poder de ser único e impenetrável.        

Esse é um ensaio bem difícil de tecer palavras sobre ele, sobretudo porque é uma obra para antes de tudo ser sentida, ser penetrada por ela, de deixar-se sujar por ela, de se borrar de azul e de dourado, de enfim, deixar um novo mundo nascer em nós. Tudo nele é tão pessoal, em primeira pessoa mesmo, uma espécie de Tirésias das artes onde o feminino e o masculino se fundem em corpos que deslizam entre tintas escorregadias e telas rugosas. Há em "Ensaios sobre Yves" um imiscuir generalizado de linguagens e almas. Patrícia se funde a Yves em uma espécie de pincel corpóreo que encarna a própria cor, ela torna-se, de uma só vez, o pincel e a tela ao materializar a obra de Klein em si, em um exercício de transe e pertencimento. O corpo em "Ensaios sobre Yves" pode ser tela ou pincel, dança ou cor, movimento ou silêncio, um objeto de estudos que projeta uma ideia de duplo, que pode até habitar os mesmos espaços e servir de viga à arte, mas jamais será somente um registro, por mais que pictoricamente estejamos perante a representação de uma única cor. É espantoso observar como Patrícia é uma artista rara, imbuída de inteireza e majestade, sempre atenta à essência da arte. "Ensaios sobre Yves" a traduz também, é uma biografia livre que se inunda de autobiografia artística e além de tudo é um exercício imagético emocionante, pulsante tal o ritmo imprevisível de um coração e transbordante de poesia, inclusive, a música no filme está sempre em sintonia com essas batidas incertas e imprecisas do coração.      


Em algum momento de "Ensaios sobre Yves" me perguntei quem estava a narrar, se Yves ou Patrícia? Ou se ainda essa era uma questão maior, tomada por um forte desejo de reencarnação. Essa é uma obra instilada por uma atmosfera lúdica e mística, de uma fascinação pela transgressão, de busca desesperada por totalidades por meio de tonalidades. Há muito pensamento filosófico perpassando tudo aqui, pois é bom lembrar que em "Ensaios sobre Yves" o existencial está tanto em jogo quanto em xeque. A morte vagueia insone por planos que por vezes ameaçam desaparecer, tal como o dia que necessariamente também se esvai, tal como é soberanamente evocado no próprio final do filme. São muitas mortes pleiteadas por Yves Klein, e "Ensaios sobre Yves" até esboça documentá-las, mas espertamente caminha pelos terrenos da inspiração do artista, não quer aprisionar sua narrativa em um contar a vida em um contínuo racionalizado. Se Yves fugiu da perspectiva, da linha e todos os traços que aprisionaram a história da arte numa tradução cartesiana do mundo e da vida, para que fazer o mesmo com o filme que parte dele, que se propõe imergir na sua alma, não em uma cronologia linear e reducionista. Há em "Ensaios sobre Yves" uma poesia que transita entre enquadramentos, silêncios, performances e palavras que entoam como se fossem uma canção de amor. E na verdade são mesmo isso. Uma espécie de hino à rebeldia que só a arte permite e inspira, e que Patrícia sobeja com o coração, a elegância e beleza de sempre. 

Certa vez, Arnaldo Antunes disse que amava a palavra ensaio e tudo que a cercava, a liberdade que essa palavra enseja e busca, a pessoalidade que ela impõe a uma reflexão. Essa definição paira na minha cabeça desde que assisti o "Ensaios para Yves" de Patrícia Niedermeier. Fiquei matutando o quanto que o pessoal para ela sempre esteve relacionado na apreensão do movimento, no pensar o mundo pelo estudo do movimento dos corpos sobre ele, em como o corpo reage às coisas, ao poder, ao absoluto. O corpo pode ser cor, uma cor, várias. Pode ser ainda uma busca, um espaço de descobertas, um exercício para o devir, uma ética que embasa uma atitude perante o viver. O mundo pode está contido no movimento, desenhado por ele. Mas isso também é uma forma de ensaio, de deixar a digital no movimento, de imprimir uma cor nele. Yves imprimiu, impôs uma cor ao silêncio. Imprimiu algo de concreto no que é fugidio, o próprio movimento. Há de haver liberdade, afinal, movimento é o ato de libertar-se. Libertar a cor do restante das cores. A arte é sempre a busca da libertação. Silenciar o movimento e pensar na cor, ou dar cor ao movimento? Fazer a cor dançar, flanar sobre o mundo como um ente, instaurar o silêncio. As palavras, as cores, o movimento, o silêncio, tudo absorvido de uma vez só para ser o todo, mas também para não o ser, porque a parte pode ser um todo, a cor pode ser o todo. A totalidade como um exercício do preenchimento do vazio, como desequilíbrio e queda, como silêncio. Mas não há um equilíbrio na queda? A queda também contém o estático, é uma soma de instantes, ela não é só movimento. "Yves está em tudo que fiz e farei". Está sentenciado pela artista Patrícia, impresso no corpo porque vem da alma. Assim como Klein se inspirou no judô para pensar sua arte, Patrícia inspirou-se em Yves Klein para cultivar a sua. É um inspirar-se eternamente na vastidão existente na ideia sinfônica presente em uma única nota, é mergulhar da extensão de algo único que se propaga incessantemente. Como terminar algo que se entoa único, que é completo em sua própria infinitude? Uma nota musical proferida como um discurso interminável, que não cessa porque depois dela não cabe mais nada, nem um fim. Uma obsessão pelo um que é todo, imprescindível, que sintetiza o único. Mas como sintetizar o todo pelo mono? A hermenêutica da arte de Yves é a da interrogação pela exclamação. 


O monocromático em Yves Klein é mais do que mistério. É o questionamento das cores pela afirmação de uma, como se a cor anulasse o colorido. O monocromatismo nos faz pensar na cor para além do que ela é habitualmente com as outras, ele nos propõe outro universo, o da cor sem as cores. Como falar do pictórico com a cor, mas sem as cores? Pensar a cor em sua inteireza sem subordinações ou aprisionada por outras cores, sem interdependências. Imersa em sua individualidade totalizante e atordoante. Se permitir ser o universo, ser parte a partir do mergulho imersivo. "Ensaios sobre Yves" nos performa no monocromático, lança nossos sentidos a bailar nos silêncios da cor. Yves Klein transformou o movimento do judô em cor, em azul. Pôs a cor para ser movimento e pelo monocromatismo estudou o movimento. As pinceladas de Yves estão na tela-corpo de Patrícia, assim como o corpo dela igualmente vira pincel a fabricar movimentos que expressam o mundo vislumbrado por Yves. O judô, a cor, o movimento e a queda. Aprender a cair para poder saltar no vazio.            

O título já diz: ensaios. Porém, são tantos ensaios que vão se sobrepondo, como se caprichosamente fossem desorganizando as próprias ideias de Klein, as retirando da prisão, como se essa balbúrdia funcionasse como um tipo de liberação da alma do artista perante ao mundo, tal como uma epopeia desmedida e anárquica. Se o mundo aprisionou o artista, a obra de Patrícia o liberta, lhe tira os grilhões e o arremessa apaixonadamente para o mundo, em um imenso e pleno salto no vazio. "Ensaios sobre Yves" se coloca nesse espaço indevido do risco do salto, do momento incerto que transforma a vida e a noção de morte, porque entre o salto e a morte é onde se concentra uma vida incontida. É sobre isso que Patrícia poetiza, sobre um sentimento que não pode ser enquadrado ou previsto, nem pelo cinema, pelas artes pictóricas ou até mesmo por qualquer sistema político. O artista colocado em um lugar do incerto, de não saber o que será do amanhã. Viver no talvez, no quem sabe o que será o depois, o próximo passo, sem ter a certeza do próximo prato de comida. A urgência e a arte postas frente a frente, sem se ter a menor perspectiva de segurança. A arte pela necessidade de expressão, de existir em um mundo que não compreende o artista, que o joga impunimente ao ridículo. 


"Ensaios sobre Yves" proclama que a vida e a arte são como um balanço, a ir e vir, infinitamente, sem anular ou ratificar nada, apenas como um exercício para se contemplar a existência sagrada do ouro dourado e do azul. Curioso, já notaram que na beira-mar tem partículas douradas pela manhã? Como se o sol pintasse a areia quando lança seus primeiros raios no mar. E convenhamos, nada é mais Yves Klein do que o mar, o pôr-do-sol e o céu a exibirem cores radiosas que se reinventam a cada novo dia. Às cores da natureza não se é possível promover uma totalização cartesiana, pois a arte do mundo está eternamente em movimento. É como querer decifrar a vida e diante dela constatar a expressão de uma beleza que está posta à vista mas que jamais é possível de alcançar, pois ela não está mais lá quando se chega nela. Então, como viver e sobreviver em um mar onde o objeto da pesca jamais é fisgado? Patrícia parece estar consciente de que o campo em que atua é o da dúvida, o do incerto, e que a arte existe para nos tirar do aparente conforto de saber como caminhar sobre ele. Se um passo nosso está devidamente amparado no chão, o outro está a vagar indefinido pelo vazio e a beleza e a poesia se inserem exatamente nesse vão. 

"Ensaios sobre Yves" é um tributo ao sensível, sobre um sentir-se no mundo a partir de uma consciência, de uma cor ou por um movimento. Um filme profundamente inspirador, capaz de despertar um sentido à arte, sobre seguir em frente, mesmo quando uma onda devastadora tenta nos jogar sempre para um alto-mar desolador. É sobre a poesia que impregna o ato de viver e de fazer arte, um átimo de amor e fúria. Patrícia Niedermeier assina seu primeiro trabalho solo no cinema e carimba uma marca que já era visível anteriormente em seus filmes junto com Cavi Borges. Uma diretora que ama o estranhamento, que como Yves Klein, uma adoradora do vazio, mas um vazio que revela o fundo do ser em um mundo onde tudo está tomado por um preenchimento excessivo. Esses são ensaios para se pensar e também para se viver neles, usufruir da experiência de dois artistas sensacionais: Patrícia Niedermeier e Yves Klein. Tal como a busca de uma cor absoluta, "Ensaios sobre Yves" impulsiona a fusão que torna ambos em um só artista, em uma só arte, afinal, na arte, a morte não existe e o cinema pode realizar isso, em especial quando está em boas mãos.

Comentários

  1. Como é bom ver um filme detonar tal fluxo de pensamentos e converter o crítico num poeta!

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