"Ele pode ser um Deus de perdão, mas cada homem tem o seu limite"
Esse filme mostra a força que um roteiro bem estruturado pode fazer para alavancar uma proposta cinematográfica baseada na narrativa clássica. Cada imagem e som de "X - a marca da morte" produz um sentido, faz o filme ganhar uma amplitude impressionante. Logo no início há uma curiosa e inesperada homenagem a "Cidadão Kane", clássico maior de Orson Welles, quando na entrada da fazenda lemos uma placa dizendo "Não ultrapasse", tal como também está no portão da mansão do filme de Welles, um tipo de convite às avessas, daqueles que apenas nos instiga e estimula a conhecer mais o porquê da proibição. A trama é simples, retrata uma jovem e reduzida equipe que quer se engajar na indústria pornográfica e que aluga uma casa de uma fazenda onde moram um casal de idosos para produzirem um filme. "X - a marca da morte" se passa nas primeiras 24 horas desse grupo na fazenda.
Ti West realiza uma obra saborosa que flerta sedutoramente com o masoquismo ao escolher planos rápidos e em close de assassinatos, todos plasticamente muito bem filmados, uma marca da produtora A24, que vem acumulando prestígio nos últimos anos. "X - a marca da morte" é um dos grandes filmes de terror dos últimos anos, com um estilo slasher seco, cortante e direto. Antes de desconfiarmos de qualquer cena que sugerisse terror, ainda na estrada, os jovens veem uma vaca atropelada, completamente trucidada por um trator. Ti West filma com naturalidade os carros esmagando as tripas, como se o carro estivesse apenas passando por maços de papel. Esse é o primeiro indício de que mais do que a morte em si, o que veremos está para além, um certo ritual que só o cinema sabe fazer. Ti West tem a noção desse valor íntimo que esse cinema de gênero estabelece com a morte, o quanto ele é permissivo com a liturgia do ato de matar. Não à toa, filme de terror e masoquismo andam tão próximos do slasher.
"X - a marca da morte" parte sistematicamente do contraste orgânico entre o corpo jovem e o idoso, o diretor Ti West vai edificando uma disparidade sexual inconciliável neste etarismo que abala qualquer existência de civilidade nas relações humanas, tendo estrategicamente, desde o início, um discurso de um pastor conservador na televisão como contraponto ao filme pornô que será realizado pelos jovens. Para o casal de idosos, a vitalidade sexual dos jovens ativa um tipo de memória do que foram na juventude, mas que perderam na velhice e abre-se então um perigoso abismo para um inconformismo recalcado. O filme carrega esse peso da carne, do quanto a sociedade despreza o corpo que vai se deteriorando e exigindo uma juventude constante dos corpos. "X - a marca da morte" trata disso de uma forma direta, contrapondo os corpos tonificados dos jovens com os corpos sem viço dos idosos.
A clareza tanto na defesa das ideias quanto na sua execução fazem de Ti West um diretor a ser observado com o máximo de atenção (ainda mais que "Pearl", a continuação de "X..." reafirma o seu talento como narrador cinematográfico). O filme não só se passa em duas casas vizinhas como se constrói a todo instante pela dualidade muito calcada em salientar as diferenças do corpo jovem/corpo idoso. E essa dualidade encontra-se também na concepção cinematográfica de "X...", as cenas são editadas para exaltar e afirmar essa dualidade. As cenas de sexo entre os jovens, filmadas numa das casas estão sempre referenciadas e contrapostas com cenas dos velhos na casa deles. Uma das cenas mais interessantes de montagem paralela é a primeira em que vemos a jovem Maxime (Mia Goth) encontrando a idosa pela primeira vez enquanto Ti West alterna cenas da filmagem do filme pornô, onde um personagem também está encontrando a filha do fazendeiro pela primeira vez e em ambas as cenas eles bebem limonada. São correlações que vão se enfilerando em "X..." e que forçam o espectador a pensar nesses paralelismos cênicos. Importante pensar em como a sociedade enaltece a juventude como se todos pudessem usufruir dela pela eternidade.
Mas há algumas surpresas na trama, pois esses idosos do filme não são tão indefesos como muitos podem supor, eles são, ao contrário, representados surpreendentemente como fortalezas tanto física quanto moral. A aparência aqui é mero engano, as fragilidades na verdade são mais humanas, a vida está por um fio para todos nós. Se lá no início Ti West nos mostra as vísceras de uma vaca na estrada como um prenúncio de um terror, a imagem sombria do idoso Howard (Stephen Ure) na chegada dos jovens na fazenda também não deixa de ser assustadora. Ti West investe na textura das imagens, em especial no contraste entre as peles lisas dos jovens com as enrugadas do casal de idosos. O filme tem cenas memoráveis como a da primeira morte com a velha dançando orgasticamente sob uma fotografia vermelha estilosa, imponente, sombria e bela.
"X - a marca da morte" ainda nos brinda com ângulos sofisticados como os zenitais (câmera colocada no teto de uma casa ou no céu) em vários momentos dando uma dimensão a mais à narrativa. Logo na cena de abertura o diretor emula a partir de uma janela um enquadramento que se assemelha ao da narrativa do filme pornô dos jovens em um formato de tela 4:3. As interpretações dos atores estão bem calcadas nos grandes clássicos do gênero slasher dos anos 1970 e 80, destaque para a brasileira Mia Goth (Maxime), assim como Ti West investe numa aura que muito lembra esses filmes, que soa como uma carinhosa homenagem. Um sério candidato a clássico do gênero.
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