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AMIGO SECRETO (2022) Direção de Maria Augusta Ramos


Dando continuidade ao processo das farsas

Texto de Marco Fialho

O objetivo da diretora Maria Augusta Ramos é claro: desfazer a série de farsas que se montou na política brasileira a partir de 2013. Primeiro foi "O Processo"; agora, "Amigo Secreto". Confesso que depois do esclarecedor e minucioso "O Processo" (2018) assistir a "Amigo Secreto" me trouxe uma leve decepção, pelo menos do ponto de vista cinematográfico. Se o filme anterior de Maria Augusta Ramos se revelou de uma potência narrativa, onde diretora adentrou nos bastidores do impeachment da Presidenta Dilma com riquezas de detalhes, que só mesmo um documentarista pode captar, em "Amigo Secreto" os fatos nos chegam sem um grande impacto, talvez tenha faltado um frescor que havia em "O processo", que não senti nesse novo trabalho da diretora. Assim, gestos e outras sutilezas inesperadas que enriqueciam cada sequência do filme anterior, nesse de agora não pude ver de maneira tão contundente. Muitas das cenas que vemos no filme já circularam de tal maneira que também perdem muito de sua força. Algo que me tirou bastante do foco foi a escolha por uma montagem temporalmente descontínua. Creio que nesse caso específico, o de desmascarar a farsa da Lava Jato, a ordem dos fatos poderia agregar mais do que o picote entre os anos, por mais até que esse se justifique para amarrar fatos mais recentes com outros anteriores, e assim os unificarem. As mensagens travadas entre o então juiz Sergio Moro e o procurador Deltan Dallagnol mais do que ilegal foram antiéticas e levaram o país para o atoleiro moral. Como um juiz poderia julgar com isenção trocando táticas com a acusação? Claro que o processo assim nasceu maculado, e revelava mais do que uma farsa, um plano para retirar um grupo político do poder para alçar outro, que de uma hora para outra se tornou a grande solução para o fim da corrupção no Brasil. Claro que toda essa mentira levaria a um engodo político, a uma armação, que é justamente o que o filme de Maria Augusta Ramos tenta desmontar.              

Claro que a minha visão crítica é em relação ao filme em si, não em relação à temática e ao viés de filme denúncia que "Amigo Secreto" aborda. Que fique bem claro: os comentários que eu possa fazer aqui não apagam a importância da denúncia da farsa que foi a Lava Jato. Esse valor ninguém pode tirar da obra, nem mesmo o crítico mais cricri. Afinal, um dos vieses possíveis do documentário é esse mesmo, o de não deixar que uma determinada história oficial prevaleça e vire a única narrativa sobre um determinado tema, aqui nesse caso específico, o de reafirmar a farsa montada por procuradores, juízes, grande imprensa e o Governo dos Estados Unidos. Trazer para discussão a sigla FCPA (Foreign Corrupt Practices Act), lei criada nos Estados Unidos que permite ao FBI apurar e punir atos de corrupção nos países estrangeiros, é um dos pontos altos de "Amigo Secreto" e creio que deveria até ter se tornado um ponto principal a ser explorado, porque um mergulho nesse fio internacional poderia entregar mais detalhes e novidades do que qualquer outra imagem já muito batida, como o do depoimento de Lula a Moro ou a de Florestan e Cruvinel entrevistando Lula na prisão em Curitiba. "Amigo Secreto" poderia ter se aprofundado nesses esgotos conspiratórios e trazer mais evidências sórdidas, fétidas, que por ali grassam e proliferam. Esse seria um filão importante a ser desmantelado com louvor, para se enterrar de vez a eterna sanha golpista no Brasil, que sempre está apoiada, e mais, sempre alicerçada nos estertores do subterrâneo dos governos dos Estados Unidos. 


Quem estaria bancando Sarah Winter e sua esdrúxula encenação macabra que gritava e exigia o fim do STF e a volta ao regime de exceção? No Brasil, os absurdos costumam ser analisados na superfície, apenas pela banalidade e pelas ideias simplórias que eles representam, mas toda aquele teatro de horrores tinha um fundo de investimento, um rol de interessados em desmontar a frágil democracia brasileira. Creio que "Amigo Secreto" apenas contorne esses temas e acaba por se perder em meio a muitas imagens já conhecidas demais. O filme aponta para os interesses de se aniquilar a infraestrutura brasileira, as empreiteiras que cresceram junto com a Petrobrás, que estavam a forjar um império econômico brasileiro, potente e com condições de levar o país a uma posição internacional significativa. Devido à complexidade que envolve o projeto de destruição do país como potência econômica, o melhor seria a realização de uma série que pudesse ir desnudando as mais variadas facetas desse desmonte, da farsa política até a destruição econômica em si, que nada mais é do que as ações perversas do Governo Bolsonaro. Jamais na nossa história, um governo foi tão efetivo em assassinar como o atual, seja por liberar o uso de armas de fogo para grupos criminosos (alguns até condecorados no passado pelo presidente atual), como os atos deliberados para destruir fauna e flora nativa, populações originárias e propiciar o avanço de grupos milicianos pelos quatro cantos do país, da favela carioca até os grileiros na Amazônia. 

A estrutura narrativa de "Amigo Secreto" foi pensada e construída por meio da imprensa que teve um importante papel na apuração e denúncia da farsa do lavajatismo, em especial o "The Intercept" e o "El País". Maria Augusta Ramos acompanha a rotina desses jornalistas que captaram a farsa a partir da denúncia do hacker Walter Delgati (que infelizmente está ausente no filme) e começaram a tentar desmontar tanto as mentiras quanto as conexões que as conversas chamadas popularmente de "Vaza Jato" serviram de base. Creio que essa profusão de caminhos para o desmonte da farsa dificultem a ideia do todo, pois são muitos os braços que compõe o quadro geral. A montagem jurídica, os inúmeros aspectos políticos da eleição de 2018 (a retirada de Lula da disputa, a candidatura sórdida de Bolsonaro, o presente dado a Moro com o convite a ser ministro e depois nomeado ao STF, o governo desastroso de Bolsonaro e os assassinatos encampados, seja pela omissão na pandemia, por não proteger os povos originários e quilombolas, por estimular o extermínio dos vermelhos. Enfim, estão sendo quatro anos penosos e longos, onde o terrorismo de Estado se implantou no Brasil, ficou difícil para Maria Augusta Ramos costurar esse rede de complexidade e de horrores que tomou conta desse país. 


Creio que a dificuldade do filme revele uma dificuldade de todos nós diante de sistemáticos e diários ataques feitos por esse governo genocida, que por meio de mentiras quer se perpetuar no poder. Os absurdos políticos confundem por estarem em várias frentes. Como conseguir abordar tantos desmembramentos do horror em um filme de pouco mais de duas horas? Porque a farsa não é só a farsa, ela é assassina, ela implanta o terror, como estamos vendo no caso do jornalista Dom Phillips e do indigenista Bruno Pereira. Infelizmente, essa moeda bolsonarista e lavajatista tem mais de duas faces, ela se ramificou, se espraiou pelo país afora, de tanto falarmos do mal, ele parece que se encarnou por aqui e o seu poder de destruição é incomensurável, ele atinge tanto a esfera do emocional quanto o aspecto material da vida, ao espalhar novamente a fome para milhões de brasileiros.    

Mesmo com todos as questões que relacionei acima sobre as dificuldades que senti ao assistir "Amigo Secreto", creio que seja fundamental que todos os brasileiros assistam a denúncia que faz Maria Augusta Ramos. Aproveite para ver ou rever "O processo" na Netflix, pois ambos os filmes se complementam. "Amigo Secreto" avança sobre a ideia de golpismo e nos faz reconhecer que quem mais perdeu com todo esse processo foi a população brasileira, que atônita, assistiu a derrocada de sua economia enquanto assistia a bandidagem tomar o poder. Tudo em nome de uma farsa montada para vender-se a ideia de chamar o Governo do PT (que foi na verdade um governo de coalisão) de a maior organização criminosa da história. Quem viveu pode constatar a farsa, embora alguns ainda teimem em não ver o que está mais do evidente. As imagens finais de "Amigo Secreto" muito dizem sobre o atual descalabro que vivemos, o de defender o óbvio: a floresta, a cultura, a fome, o direito à moradia, entre tantos. O som da queimada é tão avassalador que nos penetra e queima até a alma, pois Maria Augusta o amplifica assustadoramente. A boiada continua passando, mas o fim desse tormento esperamos ansiosos, já que está marcado e que o seja para muito breve.            

Deixo aqui a minha crítica para o outro filme de Maria Augusta Ramos ,"O Processo", que também aborda mais uma farsa política brasileira: o impeachment da Presidenta Dilma Rousseff

 O PROCESSO - Direção Maria Augusta Ramos (cinefialho.blogspot.com)




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