
A nuvem soturna que paira sobre nós
Crítica de Marco Fialho
Vivemos o momento político mais indefinido de nossa história republicana. Um sujeito otimista pode ser considerado hoje um ingênuo. Nesse contexto de franca instabilidade, inclusive emocional, surge
"O Processo", filme dirigido por Maria Augusta Ramos, uma de nossas mais importantes documentaristas. O labirinto kafkaniano é uma referência visível no filme, pois o que está a ser denunciado pela diretora são os inúmeros procedimentos amparados por leituras realizadas a partir do direito constitucional, mas com um rigor bastante incomum em terras brasilis. O estranho é que em um país onde os pormenores nunca foram levados a sério, muito pelo contrário, sempre foram totalmente desprezados, de repente tornaram-se premissas e provas incontestáveis para acusação apenas de um grupo político. Quem não desconfia disso é no mínimo mal intencionado.
Uma das mais maiores dificuldades que senti assistindo a essa obra, tão contundente para minha pessoa, é o fato de estarmos vivendo ainda esse processo de que fala o filme. Essa é a primeira impressão que gostaria de frisar aqui. Enquanto sujeito histórico que sou, atuante e interessado pela vida e história desse país, não posso deixar de registrar minha afinidade à visão política da diretora, por ser, como ela, um cidadão indignado com tudo que vem ocorrendo no país desde a reeleição da Presidenta Dilma Rousseff. Não se trata de defender um determinado governo, mas sim a nossa nova e hoje já combalida democracia. Se é que podemos ainda sustentar alguma vitalidade para essa palavra. Considero uma tarefa impossível para o crítico fazer uma análise desse filme sem mostrar a sua cara, sem dizer a que veio. E a força da obra de Maria Augusta Ramos é essa, construir uma visão clara do processo de impeachment da Presidenta Dilma, mostrando toda a face obscura do golpe sofrido pela democracia brasileira. O descaramento de uma elite política conservadora, obscura e que luta verozmente para preservar seus privilégios mais escusos.
Realizo todo esse introito também para louvar e ser compatível à própria narrativa de Maria Augusta. Agora eu me sinto à vontade para começar a dissertar sobre o filme em si.
Talvez até para justificar o título do filme, a diretora já incluiu nos créditos a prisão do Presidente Lula. Essa incorporação mostra que o tal "processo" do qual discorre o filme está plenamente ainda em curso. Por isso mesmo uma sensação terrivelmente estranha se apossa de nós durante a projeção, de que estamos revivendo o presente, não o passado. Maria Augusta nos desata os nós e amarra cena a cena cada um desses fios, e nesse ponto, o filme é de uma pertinência incomum ao costurar os tempos (passado e presente), ao juntar peças incontestes de um circo de horrores impetrado contra os que acreditam na construção de uma sociedade onde todos sejam incluídos e não apenas os históricos mandatários "homens de bem da nação", como alguns personagens duvidosos gostam de se autoproclamar.
Maria Augusta começa o filme pelo fim, mostrando a esdrúxula votação do impeachment de Dilma, que nos revelou a face sinistra dos nossos deputados que votavam em nome de suas famílias, por Deus e pela nação. Durante 10 minutos a diretora nos expõe alguns discursos de ambos os lados, o que já delineava a divisão e a polaridade para a qual o país caminhava naquele momento. Não se tem como negar que nada é mais desolador e revelador para o Brasil do que esse dia, em que conhecemos de uma só vez, em rede nacional, os nossos representantes políticos e o quanto necessário seria rever o sistema político eleitoral que permite aqueles seres abomináveis, e despreparados para um bem maior, coletivo, estarem ocupando expressivos cargos políticos de representação social.
A opção narrativa de Maria Augusta é a observacional. Ela não entrevista nenhum personagem diretamente, entretanto a câmera dela está ali, ora invasiva ora discreta no ambiente do Congresso Nacional. O objetivo principal é acompanhar a "tropa de choque" que defende a Presidenta Dilma. Gleisi, Lindenberg e Cardozo são as estrelas. Em alguns momentos eles são seguidos pela câmera de Maria Augusta. Mas a câmera se posiciona muito mais nos bastidores da comissão responsável por fazer o relatório para abertura do impeachment do que nesses personagem fora desse contexto.
Outra personagem que a câmera de Maria Augusta segue é a da advogada e denunciante Janaína Paschoal, figura mostrada sempre como controversa e com traços cênicos marcadamente bizarros. Mas exibir Janaína é deixar a face mais ridícula do golpe aflorar. Essa foi uma estratégia narrativa altamente produtiva, pois a advogada é capaz de fornecer momentos reveladores, não só pelos seus discursos fora do tom jurídico, eivados pela emoção, mas também pelos detalhes fora da comissão, como ela tomando seu toddynho ou recebendo um representante de um grupo evangélico contra o aborto. Maria Augusta investe muito nessa personagem, consegue evidenciar a artificialidade de sua postura e a superficialidade de seu discurso. Nesse ponto, a montagem de Karen Akerman é precisa ao desconstruir, com a utilização de contrapontos, a falácia do golpe, sendo o ponto alto o discurso de Lindenberg Farias detonando o discurso de amor à pátria e a defesa do futuro de nossas criancinhas (ou os brasileirinhos) de Janaína Paschoal, ao dizer que ela abriu a denúncia contra Dilma depois de receber 45 mil reais do PSDB.
Como os detalhes são fundamentais nessa obra, por revelarem mais do que os discursos em si, friso o momento em que o presidente da comissão, o Senador Raimundo Lira, solicita a troca da campainha do plenário, como se isso resolvesse a falta de empatia reinante. Há então um discurso de Gleisi onde ela pontua que todos ali, já possuíam uma decisão tomada, antes mesmo das investigações e provas apresentadas pela defesa. Esses são os nós muito bem amarrados pela montagem, esse cuidado em exibir os detalhes e os contrapontos nos momentos certos.
Maria Augusta Ramos decide fechar o filme com uma imagem bem significativa, a de uma fumaça que invade toda a tela de projeção. Se há uma imagem a simbolizar todo o embuste que vivemos é essa mesma. Parece que algo de nebuloso veio obliterar a visão desse país, tomou conta dele de forma a defini-lo exemplarmente. Podemos até não saber o que faremos a seguir, quais passos tomaremos, todavia, fechar os olhos para o processo que nos fez chegar até esse precipício não é um caminho saudável, da mesma maneira que perdoar os crimes do regime militar não apagou nem equacionou as feridas daquele tenebroso tempo, que infelizmente não está tão longínquo assim quanto imaginávamos. O regime de exceção a cada dia se aproxima do nosso cangote com sua furiosa fungada. "O processo" de Maria Augusta Ramos vem então desenhar o que muitos parecem ainda não querer enxergar.
Visto no Estação Net Rio 5, em 13 de abril de 2018.
Cotação: 4/5
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