François Truffaut: "Os filmes da minha vida sou eu"
Por Marco Fialho
"La politique des Auteurs defendia sobretudo a ideia de que o homem que tem as ideias e o homem que realiza o filme deve ser o mesmo."
François Truffaut. Extraído de "O cinema segundo François Truffaut"
Quem acompanha o trabalho incansável de Cavi Borges (que divide a direção deste filme com Patrícia Niedermeier e Rodrigo Fonseca) pelo cinema, conhece a paixão e a luta abnegada dele em prol da sétima arte. E "O cinema é a minha vida" vem profundamente embebido desse espírito, embriagado desse sentimento contagiante para quem vivencia essa obra. "O cinema é minha vida" não escamoteia, se assume logo de cara como um filme-peça, como um desdobramento/desmembramento da peça-filme "François Truffaut: o cinema é minha vida". Em dezembro de 2019, eu tive a oportunidade de assistir e escrever sobre a peça-filme (o link para quem interessar é https://cinefialho.blogspot.com/2019/12/francois-truffaut-o-cinema-e-minha-vida.html). Lá em 2019, o binômio peça-filme se sustentava pelo fato de ser uma peça que era ostensivamente invadida pela linguagem do cinema, inclusive, para não restar dúvidas, era encenada em uma micro sala de cinema. Agora, a proposta se inverte e por isso trata-se com justiça de um filme-peça, com o teatro impregnando a filmagem, o que era esperado, já que o filme está vinculado umbilicalmente à peça.
Para quem não teve oportunidade de assistir a peça, interrompida quando a pandemia iniciou em março de 2020, pode conferir agora a versão filme-peça, que conserva com bastante fidelidade o conceito da peça-filme. Agora, quem assistiu ao espetáculo presencial, fatalmente não terá grandes surpresas, já que as ideias da peça-filme estão preservadas nessa nova versão fílmica. O texto teatral continua lá intacto, assim como a visceral interpretação de Patrícia Niedermeier, que encarna o cineasta François Truffaut, em um mote mais espiritual do que corporal, uma aposta certeira dos diretores que soa mais do que natural, afinal, Truffaut era o artista que amava as mulheres.
Os diretores dividem o filme-peça em três atos: imagem-tempo; imagem-movimento; e imagem-ação. No primeiro ato temos uma relação genealógica de Truffaut com o cinema, a infância, a paixão táctil com os filmes. Esse ato é o mais poético e ele tem seu ápice na performance que Patrícia/Truffaut faz se envolvendo com as películas, com filmes sendo projetados no corpo-tela, como se os filmes lhes penetrasse a alma. Em "O cinema é minha vida" imiscui-se o desejo dos diretores com os de Truffaut, o filme se materializando como a própria vida e como definidora dela também. Interessante que quando Patrícia/Truffaut fala dos filmes que assistia surge um simbólico fundo amarelo, que remete a cor da icônica revista Cahiers du Cinéma. É a referência do cinema a nos invadir, tal como era afeito a Truffaut. Talvez essa seja a maior homenagem possível a ser prestada a ele, a ideia fenomenológica do cinema impresso nas pessoas, assim como a película imprimia um instantâneo dos insights dos atores no ato das filmagens, alcançando-lhes magicamente as suas almas.
Coerente e justificando o título desse filme, o cinema está em tudo, contagiante como uma bebida que não conseguimos deixar de sorver, mesmo sabendo que assim a embriaguez será inevitável e a ressaca também. O cinema está em tudo mesmo, no espaço em si que é uma sala de cinema, na tela que se estabelece como personagem, nos rolos de filme, na projeção de filmes clássicos e referenciais. É o cinema em overdose, na pele e para além dela, nos intestinos, no coração e veias, impresso no pulsar dos diretores, na alquimia poética dos elementos sonoros e imagéticos que recebemos a cada nova cena, mesmo que o linguajar teatral às vezes grite mais, o cinema se impõe em planos próximos penetrantes, em cenas de inquietante intimidade, algumas delas até distorcidas. O cinema está em tudo não só no título do filme, em especial no livro de Bazin que sutilmente em cima de uma mesa está a nos perguntar: o que é cinema? Bazin, o maior pensador do cinema na França, que prefere a interrogação a exclamação, afinal assim é o cinema, uma indagação ao mundo, um sopro de dúvida sobre as certezas imobilizadoras. Bazin, o pai "adotivo" de Truffaut, o responsável por criar mais um crítico, cineasta e pensador no mundo. Bazin, o homem-amor.
No segundo ato, nos chega a imagem-movimento, tem-se uma conversa de Truffaut no seu templo preferido, a cinemateca francesa, mediada por um crítico (que também outrora o foi) vivido por um outro crítico (Rodrigo Fonseca), que aqui também é codiretor, e pelo público que o faz perguntas cruciais sobre a sua trajetória e cinema como um todo. O que fica nessa sequência é a verve truffautiana, a resposta precisa, sem subterfúgios, sempre direta. Nessa parte expõe a visão sobre sua obra, sobre o mundo que o cerca, a importância das mulheres nos filmes que fez, e claro, disserta sobre a Nouvelle Vague. E sim, fala do jovem Antoine Doinel (personagem vivido carmicamente por Jean-Pierre Léaud em 5 filmes do diretor), que já havia sido mencionado no primeiro ato, mas que volta aqui como pronunciada síntese do cinema de Truffaut. Como um efeito mágico, o filme resgata um trecho do teste de Léaud para conseguir uma vaga em "Os incompreendidos" (1959), primeiro longa de Truffaut, onde constatamos a força moral do ator mirim, a certeza de que o papel era dele, ou melhor, só podia ser dele.
O terceiro ato, a imagem-ação, é um epílogo do filme, temos novamente a presença mítica do personagem Antoine Doinel, que em meu texto sobre a peça-filme classifiquei de mantra Antoine Doinel. No filme-peça, até pela liberdade maior dada pela montagem, há uma síntese que funde Antoine Doinel e Léaud, Léaud e Truffaut, assim como igualmente funde Patrícia, Truffaut, Leáud e Doinel, uma espécie de 4 em 1. Não casualmente o viés performático reaparece novamente com Patrícia contracenando tanto com Antoine Doinel como com o próprio Truffaut. "O cinema é minha vida" traz essa marca, a da dualidade, porque uma coisa nunca pode ser uma única, daí Patrícia/mulher cair tão bem como Truffaut/homem. A sua imagem em cena inspira por si o duplo. Mas o filme-peça trabalha com vários deles. É cinema e peça, é Truffaut e Patrícia, é Truffaut e Léaud, É Léaud e Antoine Doinel, É Antoine Doinel e Truffaut, é Rodrigo Fonseca (será por isso que o nome do seu personagem não aparece?) e Truffaut. São espelhos e por isso trazem distorções (o filme tem uma cena estupenda com espelho distorcido). Mas talvez o cinema seja aqui esse maior duplo. Ele sempre projeta uma imagem que é representação e nesse platonismo reside a mágica, o encanto. Cinema é projeção e visão, autor e plateia, inexoravelmente. O mantra Antoine Doinel é mais uma síntese de como a arte precisa ser a verdade de quem a faz e Doinel é o próprio símbolo da libertação do homem às suas amarras.
Por isso, "O cinema é a minha vida" é feito sob medida para os amadores do cinema, para quem o cultiva como cinéfilo, para quem abre essa janela para poder pensar acerca da vida, ou até mesmo como uma alternativa à própria vida, para quem vê o cinema como uma forma de vivência autônoma e necessária para pensar o que está para além das telas. As referências à história do cinema francês não para de acontecer no filme. O cinema silencioso, mímico (a França tem muitos) e sonoro estão presentes, em imagens e nas performances de Patrícia Niedermeier. Truffauf certa vez refletiu se o cinema seria mais importante do que a própria vida e não teve dúvida em se posicionar peremptoriamente: "é de lastimar que a vida não seja tão bem agenciada, interessante, densa e intensa quanto as imagens que organizamos nos filmes." Sim, fazer um projeto sobre Truffaut é comungar desse amor cúmplice ao cinema. Nesse filme a coerência está no amor ao cinema dos envolvidos. Falar de Truffaut é simbólico e também uma luta para se manter acessa a chama cinéfila do amor incondicional ao cinema.
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