O poderoso mantra de Antoine Doinel
Por Marco Fialho
A sala multiuso do Estação Net Botafogo ficará pequena nas próximas semanas e meses. Depois do sucesso arrebatador e merecido de "O censor", Cavi Borges, agora dividindo a direção com o crítico de cinema e roteirista Rodrigo Fonseca, nos brinda com uma homenagem terna, emocionante e profundamente cativante ao grande mestre François Truffaut, que há 35 anos nos deixou órfãos de seus filmes, que sempre foram uma declaração de amor ao cinema.
Mas a peça-filme (como Cavi gosta de chamar) "François Truffaut: o cinema é minha vida" segue a mesma energia de seu protagonista homenageado, por nos fazer mergulhar, sem boia, nesse mar amoroso, inteiramente dominado pela paixão ao cinema, não só dele Truffaut, mas de vários outros ícones do cinema de autor, como Hitchcock, Lang, Welles, Chaplin, Rossellini, De Sica e Fellini. O cinema que é o maior homenageado nessa montagem, encontra nesse espaço multiuso em Botafogo (que nos remete muito mais a um cinema do que a um teatro), um ambiente propício para que o talento imponente de Patrícia Niedermeier nos aprisione nessa narrativa impregnada pela palavra, pela poética das poderosas imagens projetadas e pelas falas inebriantes de Truffaut. Patrícia interpreta um Truffaut enfeitiçado pelo viés feminino, e adiciona a alma de tantas outras atrizes que iluminaram a cena truffautiana, as Moreau, as Bisset, as Deneuve, as Ardant, as Adjani, para apenas citar algumas. De Patrícia-Truffaut vem textos densos ditos com tamanha força e crença em cada palavra proferida. Um homem que amava as mulheres.
Entretanto, o texto e a interpretação correspondem apenas um dos aspectos insinuantes de Patrícia Niedermeier, ela vai além, muito além. Utilizando o domínio expressivo e cênico de seu corpo, ela textualiza fisicamente sua interpretação. O que mais chama atenção é sua voluntariosa energia disposta a invadir a tela do cinema. Patrícia-Truffaut parece querer transpor a tela, perpassá-la para ali habitar. Escreve com o corpo e as mãos na tela branca, como se nessa transmutação realizasse seu filme de Truffaut, emulando a Alexandre Astruc, sua caméra-stylo e sua proposta de cinema como escrita pela câmera. Essa é a beleza que vemos em cena, desse corpo a escrever a própria poética do cinema, que aproxima espiritualmente a verve literária do cinema. Sim, esse foi um viés importante de Truffaut, a de buscar a relação entre cinema e literatura, mas sem que a segunda interditasse a primeira, sem uma subjugar a outra. Um diálogo, ao invés de um apagamento sumário de uma pela outra. E esse envolvente embate linguístico está vivo, respeitoso e íntegro em "François Truffaut: o cinema é a minha vida".
Um aspecto crucial resgatado pela proposta textual desta peça-filme é o compromisso de emaranhar vida e cinema em Truffaut. Há um sublinhar justo de como a sua vida foi salva pelo cinema, direta e indiretamente. Muitos filmes estavam no seu caminho, porém um nome, André Bazin, fez a diferença: "Em três semanas ele fez mais por mim do que meu pais em muitos anos". Exatamente, o cinema é transpassado pela vida e como falar de Truffaut sem mencionar isso. Cinema como síntese da vida e a vida como síntese do cinema. Parece um jogo de palavras, mas é mais, trata-se de uma estratégia de vida, de dar sentido à ela com todo o vigor possível. Tudo passa então pelo afeto: "Hitchcock filma a morte como se filmasse o amor". Isto sim é espinha dorsal do cinema e da vida: o amor.
Amor se paga com amor. E Jean-Pierre Leaud foi a maior expressão dessa retribuição de amor. Se Truffaut foi salvo espiritualmente por Bazin, Leaud o foi por Truffaut. E como vida é cinema e cinema é vida, isso ficou registrado e carimbado em filmes pelo personagem e alter ego Antoine Doinel. Mais do que um simples personagem, Doinel na peça-filme é um mantra. Antoine Doinel, Antoine Doinel, Antoine Doinel, Antoine Doinel... Ele é o fim dessa cadeia de afetos cujo Truffaut foi o miolo, o centralizador de toda emoção. A síntese da estratégia de vida ditada pelo afeto. "A busca pelo ator que fará Doinel será pela semelhança moral, não física", assim Truffaut explicou a escolha de Leaud para o papel do então menino Doinel-Truffaut. Uma das cenas mais impactantes da peça-filme é justamente o vídeo do teste de Leaud para o papel de Doinel. De arrepiar a insurgência do menino, como se já interpretasse Doinel, ou como se Doinel o tivesse escolhido.
Falar de Truffaut é pensar na paixão pelos filmes e do lugar onde a cinefilia transformou a França e o mundo: o da Cinemateca francesa. Lugar que ressignificou a inteligência e a maneira de se assistir aos filmes e foram os jovens turcos, aqueles críticos apaixonados que depois fariam a Nouvelle Vague, que reafirmaram a ideia de que cinema podia ser um culto, que um filme visto mais de uma vez seria sempre um novo filme e não um velho filme a ser guardado. A ideia de museu e acervo é transmutada e ganha novos ares. Cultuar a história, a memória e a preservação do cinema para as atuais e futuras gerações. Quando Cavi e Fonseca resolvem "interromper o espetáculo" para instaurar uma entrevista feita por Truffaut na Cinemateca Francesa, em 1981, temos um Truffaut reativo, provocador, investido de um personagem forte, cônscio de seu papel como criador e artista. Se o clima até então era eivado pela poesia das imagens e das palavras, agora o tom é de uma encenação realista de uma entrevista. Mesmo nessa hora há poesia: Moreau entra em cena cantando belamente com Charles Aznavour. Os diretores fazem a emoção de Truffaut também ser a nossa.
Há algo de cíclico em "François Truffaut: o cinema é minha vida". Doinel é um deles. Ele é o mantra, lembra? Ele vem e volta, afinal ele é a própria metáfora do amor entre pessoas. Tudo começa com uma frase simples que fica nos martelando durante toda a peça: "um artista duvida de si mesmo até a morte". Sim, enquanto viver existirá a dúvida e seremos uma eterna interrogação para nós mesmos. Tudo parece sempre estar incompleto, às vezes até equivocado. Por isso duvidamos. Isso traduz a certeza de que a incerteza sempre reinará em nós. Entretanto é o que nos faz caminhar para frente, seguir em nossas eternas incertezas. A mesma, exatamente a mesma, que sentiu Antoine Doinel quando caminhou aparentemente sem sentido rumo à praia no final de "Os incompreendidos". Talvez duvidando de tudo: dos homens e também de si mesmo. Pelo menos é o que fica de seu olhar perdido, de uma dúvida que jamais cessará até a sua morte. Ao final da peça-filme, o que fica mesmo é o mantra. Sim, o mantra Antoine Doinel, Antoine Doinel, Antoine Doinel...
Visto no espaço multiuso do Estação Net Botafogo, no dia 07/12/2019.
Já li e reli seu texto umas 20 vezes! Que emoção!!! Seu olhar engrandece nosso trabalho e nos faz repensar todo nosso pensamento! Obrigado pelo aprofundamento do olhar e da emoção da nossa peça-filme. Faz tudo valer a pena! E nós dá mais força para seguir em frente! Sempre em frente!
ResponderExcluirUma grande emoção ler um texto tão profundo que mergulha na nossa peça filme com tanta beleza. A vida vale nesses momentos! A arte vale nesses momentos.....
ResponderExcluirEsse texto é um dos maiores presentes que um artista pode receber. Assim como Truffaut o cinema é nossa forma de respirar e vida de verdade está na tela do cinema!
Seu LINDO texto nos faz mergulhar lá no cinema/vida.
E tantos amores.....
Antoine Duanel André Bazin Jeane morreau Jean Pierre Leaud Marco Fialho....
Obrigada!
Patrícia Niedermeier