YOJIMBO
– 1961 *
“Com
muito sossego
Ando
sozinho, e sozinho
Eu
me regozijo.”
Issa (1763-1827)
O tal vilarejo deve aqui ser entendido não como simplesmente um vilarejo, mas sim de uma forma metáfora. Ele é um locus representativo, uma síntese do absurdo tipicamente mundano. Realizado em 1961, em pleno período de Guerra Fria, Yojimbo retrata um conflito insolúvel, uma completa incapacidade de comunicação e amabilidade entre duas partes. Kurosawa mostra isso como uma expressão do patético, o patético extremismo da guerra, da manipulação, da malícia insidiosa e o poder de paralisação de uma coletividade quando mergulhada em tal situação.
Quando Sanjuro chega ao tal lugarejo o coveiro é o único sujeito feliz com a contenda entre os dois grupos, com as mortes sucessivas ele trabalha constantemente e garante o sustento. Só que Sanjuro, um elemento diabólico, incrementa cada vez mais a discórdia entre os grupos. Primeiro negociando altos valores de seu serviço, manipulando-os descaradamente. Depois incita a discórdia fazendo um grupo acreditar que o outro o está agredindo. Assim, as mortes tornam-se tão banalizadas que o coveiro perde a função, enterrar os mortos não é mais preciso.
Como se vê, Yojimbo é uma parábola interessante, desenvolvida com um humor cáustico por Kurosawa. A descrença do cineasta pela humanidade é latente, mas essa descrença vem do fato das coisas estarem como estão e não de serem como são. Essa é a linha tênue na qual Kurosawa trabalha. Para ele os homens perderam a inteligência, eles apenas sabem se agredir e tentam se prevalecer frente aos outros. Mas no fundo tudo ainda depende do homem, inclusive a salvação. Aqui no caso, literalmente a salvação é Sanjuro, personagem exterior ao lugarejo, mas que além da força tem inteligência, algo cada vez mais raro nos homens.
Com Yojimbo, Kurosawa presta mais uma homenagem aos clássicos filmes de faroeste, só que dessa vez usando referências mais explícitas do que em outros filmes seus. Enquadramentos (inclusive o uso de panorâmicas), cenários, personagens, ventos, duelos e até uma pistola compõem a história. Mas a pistola não vence a espada de Sanjuro, pois não se trata apenas de se ter mais tecnologia armamentista. Para Kurosawa existem outras formas de luta e são elas que estão ausentes no mundo, o do passado e do presente.
Yojimbo é mais um filme de Kurosawa onde há um grande cuidado e rigor na construção dos planos. Os movimentos de câmera são de difícil execução, pois na tradição dos filmes de Kurosawa, há muita movimentação dos personagens, assim como da câmera. Como ser preciso quanto tudo está em movimento o tempo todo? A escolha acertada do fotógrafo Kazuo Miyagawa, o mesmo de “Rashomon”, foi fundamental para o resultado alcançado.
A música de Masaru Saito chama muita atenção durante a projeção, talvez até incomode um pouco em certos momentos, roubando a cena e nos dispersando por demais da cena, mas são bem elaboradas e há uma evidente referência às músicas dos faroestes clássicos. O cenário da única rua que caracteriza a lugarejo lembra também as cidades dos faroestes, com seus espaços afeitos aos grandes confrontos e duelos.
Até a metade do filme nota-se uma grande dose de humor permeando o filme. O personagem de Mifune é o grande responsável por uma contínua e fluente ironia, mas não é só ele. Todos os outros personagens se comportam de maneira atabalhoada, como se Kurosawa estivesse rindo das situações ridículas envolvendo ambição, mesquinharia, enfim, uma ausência de valores básicos que impedem uma convivência amigável entre os personagens. Outra ironia é que Sanjuro pouco luta no filme. Ele fica sondando ora um lado ora o outro, joga um contra o outro, luta apenas pontualmente. Kurosawa filma cenas lindas com Sanjuro sentado no alto observando panoramicamente e zombando de todos. Seu personagem só age mesmo depois que um grupo elimina o outro, e aí ele entra em cena para exterminar o grupo vencedor.
Tal como nos faroestes norte-americanos, existe na história, implicitamente, uma destinação, um personagem que surge do nada, ou dos céus, e depois de cumprir uma missão de justiça ou de cunho apaziguadora, se vai com o vento. Visivelmente, esse tal personagem viajante não faz parte do ambiente, mas tal como uma entidade funcional, ele aparece como um espírito salvador, uma presença historicamente necessária para o restabelecimento de uma determinada ordem social. Essa ideia, particularmente, muito agradava Kurosawa, sempre cioso em conseguir, por meio de seu cinema, contribuir para um mundo mais justo e humanizado.
*texto escrito para o catálogo da mostra “Jidaigeki: viajando com Kurosawa ao Japão Feudal”, em 2016.
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