Texto por Marco Fialho
Sonhos de Trem é um filme sobre memórias, não só as de Grainier (Joel Edgerton), um lenhador do começo do século XX, mas também a de um país, que só anda para frente, assim como os trens em suas jornadas pelos trilhos. Porque um país não se faz apenas por um discurso, mas também pelo suor de tantos que deram seu sangue e às vezes a própria vida por ele.
As memórias vindas de Sonhos de Trem são quase sempre melancólicas e evocam sonhos interrompidos. A direção sensível de Clint Bentley explora poeticamente os sonhos americanos dos homens comuns e trabalhadores que ficaram pelo caminho, daqueles que construíram o país e ficaram invisibilizados e esquecidos pelas narrativas oficiais.
Grainier representa tantos homens que enfrentaram condições sub-humanas e trabalhos fisicamente extenuantes para construir a infraestrutura do país, como as ferrovias que precisaram de homens como esses lenhadores que derrubavam imensas árvores para que os trilhos desenhassem uma nova trajetória de pessoas e mercadorias que necessitavam se deslocar.
Muitos desses lenhadores foram homens solitários e sem família, que emprestaram a força de seu corpo em trabalhos perigosos, em terrenos acidentados e grandes desfiladeiros, que possibilitaram a construção de pontes por sobre rios caudalosos. Saiam de um lugar para o outro, em cidades e Estados muitas vezes distantes. Mas a história de Grainier teve a companhia de Gladys (interpretada pela carismática Felicity Jones), uma mulher apaixonada e da pequena filha que tiveram juntos.
Pensar acerca desse minúsculo núcleo familiar e o quanto de beleza que ele emana para o mundo, talvez seja o que mais acentue o sentimento de melancolia que atravessa Sonhos de Trem, pois a memória de Grainier jamais se liberta das imagens dessas duas mulheres e a luz que ambas representam para ele. Essas são as imagens e sons recompensadoras de Sonhos de Trem, a assertividade da possibilidade de felicidade na vida, essa é a força que vem desse filme, uma esperança que ele carrega e que nenhuma tragédia consegue extirpar. As cenas entre Grainier e Gladys entranham, são como sonhos possíveis entre duas pessoas, a crença na força do amor e do querer compartilhar a vida com um outro ser.
Sonhos de Trem não se furta a contar de maneira indireta algumas histórias dos Estados Unidos, aquelas que no máximo viram notícia de um dia, como a morte por vingança no meio da mata e que apenas pouquíssimos homens guardarão para si, talvez como uma lembrança por não ter feito nada para impedir essas mortes. E são mortes que não podiam interromper os trabalhos e assim a vida continua, mesmo que seja apenas para alguns.
O filme traz memórias do racismo endêmico, de homens que morriam assassinados simplesmente pela cor de sua pele. A memória é uma forma de cobrança, que possui a capacidade de nos remeter às imagens que muitas vezes queremos esquecer e que surgem em sonhos para aterrorizar em uma noite furtiva qualquer. Em Sonhos de Trem elas abundam como tragédia ou réstia de que a felicidade existiu em algum momento de nossas vidas.
Sonhos de Trem possui uma narrativa auxiliar em off, que serve para pontuar, mas que não cai na redundância de narrar repetindo o que já estamos vendo na imagem. Essa narração tem um caráter mais poético, de acrescentar elementos, o que não a torna maçante ou intolerável. A fotografia acentua uma atmosfera de um mundo do passado, de um mundo com menos luz artificial, que instaura um sentimento nostálgico. A direção trabalha numa margem interessante dentro do melodrama, dessas narrativas que constrói e prepara a nossa percepção para o pior. Mas o respeito pelos silêncios existentes em Sonhos de Trem são cruciais para preencher o vazio que o filme nos impõe. Ainda há os relâmpagos de esperanças, alguns personagens que ajudam Grainier a se manter de pé, como a viúva Claire (Kerry Condon), além de suas visões recompensatórias.
Tem um personagem Arn Peeples (o sempre brilhante William H. Macy), quase circunstancial na história, mas que é bastante especial para Sonhos de Trem. Ele trabalha com explosivos, mas sua experiência de vida traz momentos de consciência para o grupo que trabalha derrubando árvores pelo país em nome do progresso econômico. Ele fala sobre a importância das árvores velhas, de como protegem o ambiente por serem frondosas: "essas árvores tem mais de 500 anos. Cada uma delas é cheia de conexões sutis. Cada fio que puxamos, não sabemos como influenciará o todo. Somos só crianças neste planeta, tirando parafusos da roda gigante, pensando que somos deuses." O que Arn expõe é um mundo que já vem se destruindo incessantemente a mais de 100 anos, que prefere acreditar na balela que a natureza se reconstituirá, mesmo com a ação inclemente do homem com suas ambições.
O que a destruição deixa em que insiste em sobreviver são memórias e melancolias. O tempo está presente para cobrar e as tais conexões que Arn tanto pronunciava estão todas a asfixiar os que ainda estão vivos como fantasmas de um mundo que prefere as ruínas do que viver com os conflitos que o próprio mundo natural já oferece. Como filmar a desesperança e a melancolia, mas ao mesmo tempo tentando manter um fio de luz no horizonte? Talvez a memória, mesmo que venha dolorida, seja essa luz para continuarmos seguindo em nossa eterna escuridão.

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