Texto por Marco Fialho
A filmografia de Lynne Ramsay é marcada por filmes com temáticas ousadas (Você Nunca Esteve Realmente Aqui e Precisamos Falar sobre o Kevin) e Morra, Amor não é diferente ao oferecer uma visão cruel sobre o período de puerpério da personagem Grace (uma Jennifer Lawrence irreconhecível e brilhante, bem distante de tudo o que fez até então na carreira), que junto com Jackson (Robert Pattinson) vão morar numa casa no interior dos Estados Unidos para iniciar uma vida feliz e tranquila em meio a um ambiente bucólico, sendo este lugar bastante propício para ela deslanchar a sua promissora carreira de escritora.
Entretanto, Morra, Amor não pode ser definido apenas por uma temática única e onipresente. Lynne Ramsay realiza uma obra que lança luz sobre outros temas, como o da viabilidade do casamento na sociedade contemporânea, em especial as expectativas dos homens e mulheres perante a construção de uma relação matrimonial e como estão os papéis dos homens e mulheres no contexto atual. Esse é um filme que se alinha diretamente a uma proposta de um cinema contemporâneo, com uma narrativa solta, imprevisível, onde o grito delirante da personagem serve como um guia para a própria concepção cinematográfica que Lynne Ramsay propõe.
Porém, confesso que em determinados momentos fiquei com a impressão que Morra, Amor é mais sobre Jackson, ou melhor, sobre a sua incapacidade de lidar com a depressão pós-parto de Grace do que sobre ela especificamente e isso é um mérito de Ramsay, o de expandir continuamente suas reflexões. Grace ampara suas atitudes na radicalidade das ações, ela não aceita o imobilismo matrimonial como Jackson parece se conformar.
Logo nas primeiras cenas, entendemos que esse era um casal sexualizado, cuja relação se sustentava muito pelo que ela tinha de carnal. Um fato que ocorre lá pelo meio do filme, deixa as coisas mais claras: Jackson após o parto não procura mais Grace e isso a atordoa imensamente. O filme vai nos interrogando e provocando sobre esse casal, que nos faz pensar sobre como são os casamentos de hoje, em um mundo onde a mulher redesenhou o seu lugar nas relações. Ela simboliza o movimento, ele a estagnação. Ela quer ação e ele as convenções (ele trabalha na rua e exige que ela cuide da casa).
O prazer é algo primordial para Grace, ela gosta de transar, não abrindo mão de se masturbar a todo o momento e quando o marido começa a se ausentar para trabalhar, a relegando a um segundo plano, ela rapidamente arranja um amante. Morra, Amor é sobre esses prazeres nos quais não se abre mais mão, que se fará presente sob qualquer situação apresentada. Embora Grace se mostre boa mãe, isso não a satisfaz por completo, pelo menos a ponto dela se abster do prazer sexual.
Por mais que Morra, Amor seja por vezes caótico narrativamente, desequilibrado e desigual tal como a personalidade de Grace, Lynne Ramsay assume a desorganização do filme levando em conta os graves e violentos distúrbios da protagonista, impulsiva, ousada e destemida, além de não ter um pingo de vergonha de se expressar socialmente. A maioria dos espectadores pode até esperar de Grace que ela tenha um comportamento mais enquadrado e convencional, mas não se pode negar o quanto suas atitudes são resultantes de um mundo onde as mulheres não se colocam mais do ponto de vista da submissão, embora isso não queira dizer que tudo é mais fácil, e as internações psiquiátricas revelam bem isso.
A mise en scène de Lynne Ramsay é portanto libertadora e destemida, a câmera e os cortes são livres , assim como a montagem. A personalidade de Grace é sem dúvida a maior referência de Morra, Amor. Ela impregna tudo, a câmera reage à interpretação vulcânica de Jennifer Lawrence e por vezes à apatia do personagem de Robert Pattinson, que representa esse homem que até tenta e se esforça, mas não sabe lidar com o furacão que é Grace. O casamento tardio vem como uma esperança de reconciliação entre o casal, mas uma solução convencional jamais poderia conter a chama incontida de Grace.
Lynne Ramsay quis com Morra, Amor, de uma só vez, aniquilar com uma ideia de casamento, de maternidade em um mundo brutal com as mulheres, de fidelidade, de família monogâmica e de tantas outras instituições que soam anacrônicas, hipócritas e descabidas em um mundo onde o que importa é o dinheiro e a realização profissional. Morra, Amor ainda traz outras interpretações sensíveis como a de Sissy Spacek como Pam, a mãe; e outra mais amalucada, como a de Nick Nolte, como os pais de Jackson. Mas antes de tudo, esse é um filme que a cada nova lembrança dele vai suscitando novas conversas, dúvidas e questionamentos sobre como organizamos o mundo na contemporaneidade.

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