Texto por Marco Fialho
A melhor forma de encarar Memórias de um Verão é abraçar desde as primeiras imagens a sua proposta contemplativa. O diretor Charlie McDowell realiza um filme com altas doses poéticas e nos convida a fazer uma viagem sensorial embalada por uma paisagem deslumbrante e única de uma família que vive em uma pequena casa de madeira em verão quase gélido, em uma região afastada na Finlândia.
O ritmo de Memórias de um Verão beira o subversivo, por nos obrigar a nos despir da agitação na qual vivemos, nesse mundo acelerado que aceitamos a pressa do viver a mil. Confesso que estava sentindo falta de filmes como esse, cujo o ambiente em si nos force como espectador a adentrar em outra vivência do tempo. É cinema em seu estado bruto, diretamente ligado à natureza e deixando que ela dite o nosso ritmo com sua desaceleração. O cinema não só como sintoma da aceleração do mundo contemporâneo, mas capaz de instaurar outras dinâmicas do tempo, calcadas pela lógica do ciclo das estações, do tempo lento onde muitas coisas acontecem no plano interno das coisas e das pessoas.
Memórias de um Verão tem basicamente três personagens: Sophia (a ótima Emily Matthews), uma menina de 9 anos; o pai (Anders Danielsen Lie), um jovem viúvo tentando injetar algum ânimo em sua vida; e a avó (uma Glenn Close arrebatadora e entregue à personagem), uma mulher em busca de compreender o que são os últimos dias de sua vida. A partir dessas vivências, mais especificamente da relação entre avó e neta, seremos levados a refletir sobre o significado da vida delas e sub-repticiamente mergulhamos juntos nessa aventura quase silenciosa, onde os significados estão contidos na relação que esses personagens estabelecem com o ambiente. Cada close que o diretor Charlie McDowell nos oferece dos rostos da neta, mas sobretudo da avó, penetra nas diferenças entre juventude e velhice, cada sulco do rosto da avó traz significados gritantes sobre o seu ciclo de vida.
Como Memórias de um Verão está condicionado por essas relações dos personagens com seu entorno, Charlie McDowell nos força a também fazer o mesmo, mergulhar não numa história convencional, repleta de pontos de virada (que alguns gostam de nomear de Plot Twist, para engendrar uma falsa sapiência linguística e de conhecimento técnico, creio que Ariano Suassuna estaria comigo nessa), mas calcada no interior dos personagens, suas angústias e aprendizados nessa paisagem selvagem e longínqua, onde cidades não aparecem e o transporte é feito exclusivamente por um pequeno barco.
Em Memórias de um Verão, minhocas cortadas ao meio por uma faca servem de exemplos sobre a complexidade da vida e suas nuances. Um pôr-do-sol pode falar muito sobre esse lugar onde os dias são mais curtos, já o vento corta até a alma dos personagens e um dia de sol pode ser raro e precisa ser valorizado. Só para viver um pouco mais de tempo nesse lugar, deu vontade de sair do cinema e ir procurar o livro da escritora Tove Jansson, no qual o filme foi inspirado. Realmente dá para sentir uma alma feminina nessa narrativa, há uma exploração das coisas que passa muito por uma percepção que só as mulheres tem sobre a vida, talvez pelo dom que elas tem de carregar uma nova vida em seu corpo.
Sophia e sua avó são as personagens que vão vivendo nesse lugar inóspito e dividem seu cotidiano conosco, nesse lugar onde uma chuva, tempestade ou rara visita do calor, dita o dia de quem ali vive. Memórias de um Verão tem diálogos, alguns bens recheado de palavras e ensinamentos, mas o mais interessante é quando vemos cenas em que as palavras tornam-se desnecessárias, como as que a avó vem para perto das águas, se senta em uma pedra ou areia e observa a dinâmica das águas a bater nas pedras, ciclos da natureza que desaprendemos com a agitação da vida contemporânea, repleta de tecnologias avançadas que precisam ser repensadas, não só absorvidas pelo social.
E são as cenas mínimas de Memórias de um Verão que enriquecem uma conversa que a neta e avó realizam sobre a vida e a morte. É lindo ver e sentir como Charlie McDowell permite que imagens e sons da paisagem se imbriquem com a narração da própria história, imbuindo nelas significados para além das palavras. Os olhares da avó para as coisas da natureza e para a neta são preciosidades que o filme capta.
Como é reconfortante poder entrar em pleno ano 2025 numa sala escura de cinema e poder realizar uma viagem tão simples e mágica. Não são bruxas dando cambalhotas, cantando músicas contagiantes e efeitos mirabolantes a nos aterrorizar com um mundo falsamente fantasioso. É a própria vida enchendo a tela com suas surpresas banais, com descobertas que fazem a vida valer a pena. Para quem busca um cinema que resgate o tempo que nos foi roubado pela aceleração consumista, Memórias de um Verão é um prato cheio, uma viagem de 90 minutos capaz de revitalizar e reinstaurar a paz que só a vida sem as exigências do consumo é capaz de trazer. Afinal, a natureza em si já nos reserva suas dinâmicas inesperadas e ricas.

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