Texto por Marco Fialho
O maior encanto de Lumière, a Aventura Continua! é o fato do diretor Thierry Frémaux trabalhar com um material filmado em um tempo em que a atual noção de cinema sequer existia, ou melhor, não se sabia que o invento se transformaria no que conhecemos hoje como cinema, pois a maior ênfase inicial de Auguste e Louis Lumière era propagar a invenção do cinematógrafo, um equipamento capaz de reproduzir imagens em movimento e poder exibi-los em uma tela grande. Funcionários deles levavam o equipamento para ser experimentado e vendido em outros países, tendo esses compradores a obrigação de fazer um filme sobre a sua cidade.
Por isso, uma das tarefas mais prementes deles era levar os cinematógrafos para lugares os mais variados do mundo, da Ásia à América, Da África ao restante da Europa. Thierry Frémaux foca seu filme nos aspectos mais estéticos, temáticos e estilísticos do que os históricos que cercaram a invenção desse equipamento, que a princípio tinha tudo para conquistar o mundo, mas que para os irmãos inventores não passava de um passatempo temporário no qual se perderia rapidamente o interesse, depois que a novidade se encerrasse.
Mas na verdade, o que Frémaux trabalha é na análise e na composição dos planos dos irmãos Lumière, o quanto eles firmaram um modo de filmar o mundo por meio de uma visão realista, de retratar os costumes, a vida moderna, os fatos pitorescos, o cotidiano engraçado por meio de esquetes ensaiados. Sem dúvida, essa é uma análise que envolve riscos, já que à época seria impossível pensar o cinematógrafo ipsis litteris como equivalente da noção de cinema que seria dada a posteriori. Cabe enfatizar essa nossa reflexão sobre essa empreitada arriscada na direção de Lumière, a Aventura Continua!.
Fora do mundo dos Lumière, Frémaux aborda somente Georges Méliès, mesmo assim de relance, para destacar e diferenciar o quanto seu estilo levaria o cinematógrafo para um viés mais lúdico, com suas trucagens e inclinação aos efeitos visuais (característica que foi desenvolvida pelo cinema hollywoodiano, expressionismo e até por Fellini mais tarde), enquanto os Lumière inspirarão outros usos como ficou evidente no neorrealismo italiano, no cinema russo (penso muito aqui em Vertov), em Jean-Luc Godard ou mesmo no cinema moderno como um todo. Frémaux francamente contrapõe um cinema mais voltado para o espetáculo com um cinema de preocupação mais realista, mais voltado para a discussão da sociedade e de seus costumes.
A narração de Lumière, a Aventura Continua! fica a cargo do próprio diretor Thierry Frémaux, que tal com fez em Lumière, a Aventura Começa (2016), se esforça por não deixar passar um detalhe nas imagens produzidas pelos irmãos Lumière, o que por vezes retira uma maior potência do filme, por direcionar excessivamente o olhar, não dando margem para que o público construa a sua própria visão do que está assistindo. Ao todo, são mais de 120 pequenos filmetes filmados entre 1895 e 1906, que Frémaux selecionou para que o público possa admirar. São imagens que nos fazem viajar no tempo, pelas roupas, pelos bondes e tantos outros detalhes que encantam até os mais insensíveis dos homens. Uma escolha muito feliz foi o diretor inserir a belíssima música de Gabriel Fauré no filme, ele que é um contemporâneo dos irmãos Lumière. Sua música ajuda a temperar com um toque dúbio as imagens que vemos, ora com uma dose saudosista, ora com um tom severamente moderno.
Vale ressaltar ainda a qualidade do trabalho de restauro desses pequenos filmes, que parecem na maioria dos casos filmados em 2025, tal a limpeza das imagens. Outro aspecto interessante é o enorme esforço de Frémaux para relacionar esses filmes dos irmãos Lumière com vários outros, e assim ratificá-los aos olhos da história do cinema, os colocando não só como fundamentais em seu contexto histórico, mas igualmente marcantes por estabelecer uma maneira própria de se filmar o mundo, com sua observação acurada, que permitiu a colocação da câmera de modo a melhor registrar o máximo de informação em um mesmo quadro.
Se às vezes Frémaux torna-se o maior adversário de Lumière, a Aventura Continua! com sua narração onipresente, sem dúvida precisamos ressaltar que a sua astúcia em saber jogar com essas imagens com outros filmes que vieram depois, e assim colaboram para o pensamento, acompanhados por uma convicção, de que eles são personagens determinantes para se pensar o cinema como narrativa. Creio que Frémaux nem precisava ir tão longe para estabelecer a relevância desses irmãos para o cinema, pois basta assistir a beleza das imagens que eles realizaram, para entendermos a paixão deles em querer fixar a poesia do movimento do mundo que eles viveram. E isso, com certeza, já seria o suficiente para imortalizá-los na história do cinema.

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