Texto por Marco Fialho
É incrível o poder de Jafar Panahi de mobilizar o público e a crítica. Poucos diretores de cinema brilham tanto quanto seus filmes, mas ele é desses, seu nome precede à obra, que diga-se de passagem é de grande relevância para o cinema mundial. Mesmo que fale a partir de seu território, o Irã dominado pelos teocratas e extremistas islâmicos, sua obra dialoga com todos nós, pela coragem política e criatividade na narrativa. Mas preciso dizer que Foi Apenas um Acidente, vencedor da Palma de Ouro no Festival de Cannes 2025, não só não me pegou como me incomodou em algumas premissas que abraça.
Tudo começa em um acidente, que está presente no título, quando um homem ao volante atropela fatalmente um cão numa estrada escura. Ele está acompanhado pela esposa grávida e uma criança e fica nervoso ao notar que o carro apresentou um problema mecânico. Nessa parada, um homem o identifica e o persegue até o sequestrar. Essa parte do filme tem uma tensão que prende o espectador à tela e Panahi filma sempre delimitando o nosso olhar a um personagem com a câmera na mão, o que sempre torna a narrativa atravessada por perspectivas nervosas.
O sequestrado é Eghbal (Ebrahim Azizi), um homem pertencente ao aparelho de Estado e que tortura pessoas no regime teocrático. inclusive, durante esse sequestro, o seu sequestrador Vahid (Vahid Mobasseri) vai ao encontro de outros torturados, para que eles possam confirmar a identidade do torturador. Panahi instaura então um dilema para além do político, de caráter moral. Seremos vingativos e retribuiremos o mal sofrido ou adotaremos o perdão para não sermos iguais aos nossos algozes? Mas a questão aqui deveria ser outra. Se ainda vigora o regime que aniquila os opositores, como levá-los a julgamento? É nesse ponto que a premissa de Panahi falha, ou seria Vahid e seu grupo politicamente imaturos ao não pensar nas consequências de seus atos? Creio que essas perguntas são válidas e o final do filme não deixa de reafirmar essa postura politicamente bastante infantil dos personagens. Aqui, Panahi foca mais na discussão moral (e alguns momentos até para um moralismo) dos personagens, em um exercício de que não devemos nos equiparar aos nossos algozes.
As discussões entre os colegas de Vahid podem até ser importantes e pertinentes, sobre o que fazer com essa agressividade vinda do Estado e como rechaçá-la de alguma maneira, mas o contexto em que os embates morais acontecem não é oportuno, já que não há uma justiça isenta para representá-los e por uma razão simples: os algozes mandam nos tribunais. É nesse ponto histórico preciso que a trama caminha, o poder está com os teocráticos e a guerra social está em curso, a pacificação portanto não faz sentido.
Só que Panahi desloca a discussão da seara política para a humanitária, quando põe a vida da mulher grávida e seu bebê nas mãos desse grupo que sequestra o torturador. Esse deslocamento leva o filme para uma posição despolitizada, e ouso dizer, até moralista. Só que ao salvar o bebê e a mãe, isto é, a esposa e o filho do torturador, eles como grupo se expõe ao dar o número do cartão de crédito na maternidade, e nesses casos específicos, jamais podemos esquecer com quem estamos lidando, pois um canalha sempre será um canalha. E Eghbal é um canalha.
Essa trama levantada por Panahi beira o insano, o inverossímil e até o patético, pois não se deve misturar um agente político com sua família, isso é um erro primário que retira a discussão política do caminho, como se pudesse haver mundo sem a instância política, apenas a humanitária. A cena em que Vahid atende o telefone de Eghbal é outra que se revela inocente, mas não é só isso. Naquela altura ter o telefone do sequestrado junto a ele para ser rastreado é de uma infantilidade política que não faz sentido algum, para quem está a fazer um ato político, o de sequestrar um torturador político.
Esse é o primeiro filme de Jafar Panahi em que o roteiro de sua autoria fraqueja, mesmo que a direção seja eficaz como sempre. Diante um Estado de exceção a dimensão política precisa ser outra. Se quer atacar, ataque, mas não brinque com o poder autoritário e violento, porque o que virá como resposta será brutal. As questões pessoais do torturador são pertinentes a ele e a mais ninguém. Ficou parecendo que Panahi tentou humanizar quem já era demasiadamente humano, no caso o torturado, o que soa aqui desnecessário, mesmo que o final imponha uma suspensão quando ouvimos o som do torturador perneta, apelido de Eghbal no meio político pela sua deficiência física. Fica então no ar a dúvida, se o algoz chega para agradecer Vahid por ter salvado a vida da esposa e filho, ou vem atrás dele para terminar o serviço que deixou pendurado pelo caminho.

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