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CAMINHOS PERIGOSOS (1973) Dir. Martin Scorsese


Texto por Marco Fialho

Como foi bom rever Caminhos Perigosos hoje, em 2025, quando Martin Scorsese já é um diretor para lá de aclamado e reconhecido por sua imensa identificação com o cinema e por ter dirigido obras fascinantes e referenciais. Caminhos Perigosos é um raro exemplar de um Scorsese antes da consagração, um Scorsese em estado bruto ainda em seu terceiro filme, mas que guarda a crueza do cinema que explodiria mais lapidado logo na obra a seguir, em Táxi Driver. Em Caminhos Perigosos aparece uma busca quase obstinada do diretor por uma verdade estilística tanto por afinar uma unidade visual quanto narrativa para a sua incipiente carreira. Scorsese já era então um dos grandes nomes de um movimento que revolucionou o cinema dos Estados Unidos, a Nova Hollywood (1968/1980), com novos temas, orçamentos baixos e narrativas instigantes, fora da curva do cinema clássico que sedimentou a indústria do país.

Por vezes, Caminhos Perigosos parece aqueles documentários do cinema direto americano, em que acompanhamos a rotina errática de personagens pelo mundo. Evidente que o gênero documentário é um dos grandes interesses de Scorsese e durante a sua longa carreira sempre buscou realizar. Essa narração não deixa de estar impregnada de uma ideia que se aproxima na intenção documental, a de retratar a vida desses pequenos italianos católicos largados à sorte pelas ruas, que entre bares e crimes sobreviviam de expedientes escusos. É bastante interessante como Scorsese trata a noite nova-iorquina como uma outra protagonista fundamental dessa história, fazendo tudo soar muito verdadeiro, mesmo nos momentos de loucuras mais lancinantes de festas desmedidas capitaneadas pelo álcool e a heroína.
 
A ideia documental está presente desde o princípio, quando o personagem Charlie (Harvey Keitel) está em seu quarto e a cruz católica está a cercá-lo por todos os lados, como um alerta moral que será desfeito logo nas primeira palavras que nos chegam em off, da consciência de Charlie, mas pela voz do próprio Scorsese: "Você não paga seus pecados na igreja. Você paga nas ruas. Em casa. O resto é besteira, e você sabe." Logo a seguir, Charlie acorda assustado e se olha no espelho. Essa entrada define o personagem, ele está só no mundo. Do quarto, vamos para um projetor de uma câmera de 8 mm a mostrar imagens "documentais" dele pelo seu habitat natural, as ruas. Em cima dessas imagens (muitas delas de rituais e festas católicas) surgem os créditos iniciais. Mas a câmera curiosa de Scorsese está presente nas cenas para documentar, para mostrar a vida desses personagens envoltos pela violência das ruas.              

O curioso é que depois dos créditos, Scorsese não volta para Charlie, mas mostra outros personagens que o circundarão, como Tony (o dono do bar que abraça o submundo e seus artifícios), Michael (o contrabandista e agiota inescrupuloso), Johnny Boy (um típico desajustado interpretado por Robert De Niro) até voltar para Charlie numa igreja católica a justificar a inutilidade daqueles rituais de fácil livramento das culpas cometidas. "São só palavras", diz ele sobre as palestras do padre. Mas a transição dessa cena de Charlie da igreja para o bar é fantástica. Ele está na igreja a tentar resistir ao fogo das velas, tentando domá-lo com as mãos (um truque ensinado por um padre a ele), uma parte da imagem é avermelhada e logo há um corte para o bar totalmente tomado pela cor vermelha. Isto é, Charlie vive no próprio inferno, sem mais delongas é isso que Scorsese nos apresenta: um inferno que nos chega em câmera lenta, a marca registrada do diretor. De uma pintura em um vidro de uma mulher nua, Scorsese nos leva para um corpo de uma mulher em um biquini vermelho. Haja pecado para sobreviver nesse ambiente onde a culpa mergulha tão fundo que logo nos esquecemos dela. O vermelho desse bar estará ali até o final do filme a nos lembrar o que ele representa.   

Mas quem é Charlie, esse homem jovem que vive bem vestido, engravatado, perambulando por submundos paradisíacos que em um piscar de olhos se tornam em verdadeiros infernos? Se o padre ensinou a Charlie como dominar o fogo, talvez como uma dica simbólica, para ele só existe a literalidade das palavras, pois as ruas são o seu maior parâmetro, sua régua para definir os limites da sobrevivência. Charlie se define pela relação que estipula com o espaço a seu redor. As ruas e os estabelecimentos de Nova York são os lugares (bares, restaurantes, cinemas, salões de sinuca) por onde tratam com vários desses negociantes ilegais. Scorsese trabalha temas diagonais, como o do racismo dos italianos em relação aos negros, aqui representado pelo desejo sexual de Charlie por uma dançarina negra, que ele não pode assumir perante aos seus carcamanos pela cor de sua pele.

Scorsese capricha na trilha musical, com canções belíssimas que tomam algumas cenas, quase que as definindo, como a da briga na sinuca com Please Mr. Postman (Marvelettes), Tell Me e Jumpin' Jack Flash (Rolling Stones), Steppin' Out (John Mayall e Eric Clapton) e You (The Aquatones), além de fartas canções napolitanas. Scorsese usa essas canções como joias que nos arremessam no universo desses personagens marginalizados, identificados por uma lembrança nostálgica de uma Itália empobrecida pela Segunda Guerra que se aliam à sonoridade de uma juventude rebelde dos Estados Unidos, o que confere um quê de anacronismo sonoro impactante e poético. 

Pauline Kael, em seu texto sintético sobre Caminhos Perigosos descreve o filme "como uma experiência de quem se criou na Little Italy, em Nova York, tem um ritmo perturbador e episódico, e é de uma sensualidade estonteante. O diretor Martin Scorsese mostra-nos uma podridão de textura mais densa do que jamais vista em qualquer filme americano, e um maduro senso de maldade." (in 1001 Noites no Cinema. Cia das Letras, SP, 1994, p.85). Essa minúscula análise no tamanho, mas gigantesca no teor de seu conteúdo, traz algo que julgo fundamental e que também me chamou muita atenção, o caráter episódico da narrativa. Não há uma história propriamente a ser contada, mas sim um acompanhamento de situações da vida de Charlie. A presença dele justifica um roteiro aparentemente desorganizado, que se faz potente por ser assim, sem grandes casualidades, apenas vemos porque acontece com ele ou perto dele e isso é algo fantástico. Caminhos Perigosos é uma peça crua e cruel sobre um mundo que as elites não querem tomar conhecimento, muito embora se beneficiem desse universo situado abaixo de sua esfera intocável.         

Mas em outra análise, a de Roger Ebert, outro crítico de cinema norte-americano, este chama a atenção para o fato do personagem Charlie não ser ainda um mafioso, mas um proto-mafioso a orbitar nessa seara, já que o seu tio Giovanni, este sim é um mafioso e mantém uma relação onde subjuga Charlie. O filme é sobre esse rapaz em pecado e tentado por ele 24 horas por dia, e não sobre o tio mafioso, o que é em si bem importante de observar. Scorsese é muito sagaz por tratar Charlie como um pecador que perpassa pelo mundo violento do crime. Um ano antes, em 1972, Francis Ford Copolla havia filmado o clássico O Poderoso Chefão, que se tornaria uma saga da família do mafioso Don Corleone (Marlon Brando), mas é curioso notar o quanto esse seria um aspecto que torna a obra de Scorsese única, a de adentrar na vida de um homem que comete crimes, mas ainda não é um mafioso, que se relaciona com o mesmo universo, embora não tenha sido totalmente tomado por ele. Enquanto Copolla trata do mafioso, Scorsese trata dos rapazes que orbitam esse universo.  

É muito sutil essa relação entre o mafioso e Charlie, tanto que o tio não aparece muito no filme. Contudo sua simples presença é forte, ele proíbe Charlie de se relacionar com Johnny Boy, pois segundo ele, "homens honrados se relacionam com homens honrados" e com Teresa, a prima de Johnny Boy, classificada por ele como "louca", quando na verdade ela tinha apenas uma epilepsia. Por isso, Ebert bate na tecla do pecado ser o que define Charlie, pois a culpa católica o perseguirá em toda a sua trajetória, mesmo que Charlie traga consigo dúvidas em relação às práticas católicas. Mas se por sua vez, Tio Giovanni protege Charlie, este protege Johnny Boy. Essa é a lógica instável de Caminhos Perigosos, o que faz sua narrativa ser tomada pela instabilidade e por uma câmera sempre em contínuo movimento. 

Scorsese sabe como poucos lançar o olhar do espectador para personagens que outros cineastas do mainstream jamais ousariam olhar. Mais do que humanizá-los, Scorsese os eleva ao protagonismo, os traz para a luz e se esforça por situá-los historicamente no mundo contemporâneo. Os ângulo inclinados prenunciados pelos contra-plongeé (debaixo para cima) os destaca constantemente da cintura para cima. Sim, porque esses são os cowboy contemporâneos, aprisionados por prédios altos de uma mega cidade como Nova York, que os engole a cada nova esquina, com seus tiroteios em saloons iluminados em vermelho. Esses cowboys estão com seus novos cavalos, os carros rabo-de-peixe a guiá-los não mais rumo às pradarias aqui inexistentes, mas em direção aos clubes de prostituição, jogos, drogas e bebidas. São muitas nuances que envolvem esses personagens, eles não são os mafiosos, mas estão no submundo do crime, esse mundo repleto de buracos e desconhecimento perante todos nós espectadores. De repente, nos aproximamos desses distantes personagens e conhecemos um universo que nos é escondido pelo cotidiano eugênico e burguês, já que o modelo de sociedade que nos é vendido nos comerciais e jornais é o do trabalho e da prosperidade. Evidente que esse é um filme em que se sedimenta a relação de Scorsese por atores que o seguirão para sempre, como os excelentes e hoje paradigmáticos, Harvey Keitel e Robert De Niro.

Se Caminhos Perigosos não é o trabalho mais reconhecido de Martin Scorsese, talvez seja o mais emblemático de sua formação como cineasta. Para mim, foi impossível assistir ao filme sem não me lembrar de Cães de Aluguel, obra-prima arrebatadora de estreia de Quentin Tarantino, com sua verve de criar diálogos rápidos perfeitos e às vezes intermináveis entre os personagens. E não tem como não pensar na câmera nervosa persecutória, a acompanhar os personagens mesmo que estejam em apuros rolando pelo chão ou sendo arrastado por metros e metros dentro de um salão de um bar. Por isso, podemos dizer com a devida satisfação, que Caminhos Perigosos é um belo exemplo de uma produção de uma Nova Hollywood em seu auge.  

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