Texto por Marco Fialho
Através do Fluxo é mais uma obra enigmática e repleta de buracos, em que o diretor sul-coreano Hong Sang-soo dialoga o tempo todo com uma sensação de que alguma coisa está para além do quadro. Sempre temos uma impressão de que falta alguma informação ou algum resíduo de acontecimentos, ou até mesmo que algo de inesperado acontecerá em breve. Logo verificamos que a base de Através do Fluxo é o fluxo das conversas, de como elas vão desenhando novas situações e reflexões. Afinal, essa é a arte de Sang-soo, transformar o banal em preciosidade e algo extremamente humano.
O maior barato do cinema de Sang-soo é a constante busca na sua maneira de filmar e narrar, aparentemente tão igual, mas que marca um diferencial, pois apesar de alguns fatos se repetirem, como as cenas de bebedeiras em volta de uma mesa, os seus filmes revelam sutilezas e detalhes surpreendentes. Para o diretor, o ato de beber é um momento em que abrimos nossas emoções mais verdadeiras. Em Através do Fluxo ele replica essa fórmula de maneira sedutora, em um turbilhão de revelações, comicidade, numa estrutura que parece não querer levar a lugar nenhum, o que sugere parecer que estamos assistindo a acontecimentos que se assemelham com os fatos mais simples de nosso cotidiano. Os personagens tomam corpo pela conversa, existem por meio delas e a proposta do filme é nada mais do que revelar nuances, por meio de flashes, da personalidade de cada um, não em sua plenitude, mas como acontece na própria vida, sempre em parte, em sua incompletude e aparente aleatoriedade.
Através do Fluxo narra a história de Jeonim (Kim Min-Hee) que convida seu tio (um ótimo Hae-Hyo Know, que sabe explorar os mistérios de seu personagem) para ajuda-la na montagem de um esquete teatral, depois que o antigo instrutor namora três de suas sete alunas. A chegada do tio evoca lembranças do passado, pois foi ali naquela escola, há 30 anos atrás, que ele montou seu primeiro esquete. Há ainda a professora que se mostra fã dele e que possui um peso importante no enredo. O interessante é que o cinema de Sang-soo é um tipo de anti-teatro onde impera uma falsa trivialidade nas conversas, há um esforço visível na encenação pela desnaturalização da ação, de fazer um cinema sem grandes gestos, amparado mais pelo diálogo corriqueiro que transcorre entre os personagens, e não por acontecimentos mirabolantes.
O diretor constrói uma narrativa que nos joga no interior de um fluxo de tempo e nos arremessa em um esquete da vida ao mostrar como estamos presos a uma visão parcial do mundo. Várias ações são suprimidas na diegese, mesmo depois de serem anunciadas, sem sequer aparecerem efetivamente. Em alguns momentos o tio fala de sua livraria situada numa região praiana e até o final ficamos na expectativa de conhecê-la. E em outras cenas somos impulsionados a descobrir os personagens depois de beberem algumas doses de álcool. É como se a história, ou melhor, as pessoas, só conseguissem se expressar depois de estimuladas pela bebida. Declarações de amor, ressentimentos, confissões, falas de admiração e tantas outras coisas surgem com mais evidência depois de alguns goles. A mágica do cinema de Sang-soo está inextricavelmente relacionada ao ato de beber.
De resto, Sang-soo se utiliza da mesma ideia de câmera da maioria de seus filmes, preferindo a imobilidade e os movimentos suaves, além do característico movimento de zoom out e zoom in, que faz pessoas e objetos se aproximarem ou afastarem pelo movimento de retração ou expansão das lentes da câmera.
Aí está a graça do cinema de Sang-soo, fazer algo que reafirme o estilo, mas com o desafio de contar uma história diferente, com brilhos novos e interessantes. O humor de Sang-soo traz a leveza e sofisticação tal como Woody Allen também aprecia em suas obras, deixando seus personagens em situações imprevisíveis e às vezes até desconcertantes. No final de seus filmes fica sempre a pergunta filosófica: quem somos nós? O quanto de nossa verdade mais íntima permitimos revelar quando estamos no social? E saímos com a impressão de que são perguntas que necessitamos fazer com a devida constância e que correspondem ao grau de mutabilidade inerente aos seres humanos durante a sua existência.

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