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QUERIDO TRÓPICO (2025) Dir. Ana Endara


Texto por Marco Fialho

Querido Trópico é um filme que nos pega por uma afetividade transbordante. A diretora Ana Endara esbanja sensibilidade e empatia em uma narrativa que explora com extrema habilidade a história de uma relação improvável entre Mercedes (uma Paulina García como sempre brilhante), uma mulher idosa e empresária em processo acelerado de demência e Ana Maria (Jenny Navarrete), uma imigrante colombiana contratada pela filha de Mercedes para ser cuidadora da mãe.

Como são felizes as escolhas dramáticas, narrativas e cinematográficas de Ana Endara. Querido Trópico nasce como um filme que contem uma humanidade latente, e de uma beleza visual esmerada. O ritmo que o filme encampa respeita o tempo na qual a relação entre Ana Maria e Mercedes acontece, seus silêncios e olhares atentos em que ambas destinam uma a outra. Mercedes é conhecida por ser uma mulher de personalidade emburrada e teimosa, mas a paciência de Ana Maria é tão espontânea, que rapidamente conquista a confiança da difícil senhora. 

Querido Trópico é uma coprodução Panamá/Colômbia, com uma fotografia belíssima e acolhedora assinada por Nicolás Wong Díaz, que explora imagens reconfortantes e quase todas filmadas na luxuosa casa de Mercedes. Assim como Ana Maria cuida de Mercedes, a câmera de Ana Endara busca a mesma equivalência harmoniosa às cenas filmadas. Os planos destacam planos detalhes, closes e próximos que ajudam a sublinhar a intimidade entre as duas personagens. Cada plano funciona como um gesto de carinho, mesmo que a sobriedade prevaleça na maior parte do filme.

Logo nas primeiras cenas de Querido Trópico, Ana Endara fortalece a imagem de Ana Maria como uma cuidadora diferenciada, cuidadosa e atenciosa, durante um trabalho numa clínica de repouso para idosos. Não sabemos durante a trama, muitos detalhes da vida da cuidadora, a não ser que ela é colombiana e que já perdeu todos os laços familiares e está só no mundo. No Panamá, ela só tem uma vizinha com a qual divide suas angústias e problemas. Mas essas poucas informações são suficientes para que se compreenda sua solidão e carência de atenção. Ana Maria é um tipo de cuidadora que não tem quem cuide dela, o que explica o apego fácil em relação ao trabalho e pacientes.

A necessidade de afeto e pertencimento de Ana Maria é tão grande que ela forja uma gravidez, para disfarçar o trauma de ter perdido um filho nascido morto no parto. O trabalho de construção dessa personagem pela atriz Jenny Navarrete é de uma tal delicadeza que muito é dito pelas suas posturas corporais e pelo olhar que transborda afeto, e isso sem esboçar nenhum traço de exagero, mantendo sempre a contenção como maior atributo cênico e dramático. O espaço da casa de Mercedes reforça os aspectos introspectivos de ambas as personagens, por concentrar as tensões e alegrias vividas entre elas preponderantemente em um único lugar. A ideia de trópico está bastante presente especialmente no ambiente do jardim da casa. Ali, papagaios e plantas exóticas são harmonizados e muitas vezes contemplados com chuvas torrenciais que caem quase sempre inesperadamente.      

A maior complexidade de Querido Trópico está contida na interpretação da experiente atriz Paulina García. Sua oscilação de humor demonstra um comportamento instável e incontrolável, mas tudo dosado com maestria e sensibilidade. Aos poucos, a personalidade assertiva de Mercedes perde terreno para esquecimentos e crises emocionais de um corpo que está em franca deterioração. Mas eis que nesse momento que surge o maior atrativo do filme, a possibilidade de afeto entre duas pessoas fragilizadas e vulneráveis. Ana Maria é uma imigrante solitária, pobre, sem um relacionamento amoroso e sem rumo, enquanto Mercedes vive isolada dos filhos, imersos na empresa que ela construiu e frustrados por verem a fortaleza da mãe de antes se desmilinguir a olhos vistos.    

A força de Querido Trópico é tamanha. Talvez por vivermos em um mundo tão perverso e duro, e o filme nos surpreenda por apostar na arte do cuidado, de acreditar que o afeto é possível até quando parece ser impossível. A demência pode até ser uma primeira barreira para a incomunicabilidade, mas ela em si não define tudo, pois a vontade de amparar e cuidar são forças de beleza e amizade. Querido Trópico nos mostra que não é o dinheiro que determina relações, mas o respeito que se estabelece e o carinho que quebram as distâncias sociais entre as pessoas. É bem interessante observar o quanto a tragédia da emergência da demência acaba por servir como uma quebra da hierarquia social e econômica. De repente, temos apenas duas mulheres se relacionando, sem os filtros obliterantes e preconceituosos ditados pela ideia cotidiana da diferença entre as classes sociais.   

Como é bonito ver um cinema que raramente chega ao Brasil e ao mundo, como é o caso do panamenho, aportar aqui com essa energia que nos faz vibrar. Isso mostra que onde tem gente, o cinema pode acontecer e ser importante, desde que se esteja aberto a falar do humano com o coração e generosidade.   

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