Texto por Marco Fialho
Quem vê as primeiras cenas de O Sítio, dirigido pela cineasta argentina Silvina Schnicer, com três crianças no banco de trás de um carro fazendo carinho um no outro, e se ajudando mutuamente a trocar de roupa, não tem noção do que o espera nas sequências seguintes. O idílico dessa vida rural rapidamente se transforma em algo pavoroso e o medo logo se alastra por todo o filme.
Quando essa família chega a sua bucólica casa de campo, o que encontram é a casa revirada, uma bagunça que a torna irreconhecível. O filme de Silvana Schnicer bem que lembra o clima sombrio de O Pântano, clássico dramático de Lucrécia Martelo, evocado em alguns momento pela atmosfera sinistra que enseja. A fotografia de Iván Gierasinchuk não deixa pairar dúvidas ao salientar sombras e obscuridade na sua concepção imagética.
A mise en scène de Silvina Schnicer se compraz em vários momentos por entregar pouco pelas imagens, que se revelam quase sempre fugidias, como se o objetivo fosse escamotear a verdade dos fatos. Esse é um filme que se afirma pelo sinistro, mas ele não vem das convenções tradicionais dos filmes de terror, dos sustos fáceis ou suscitado por uma música insinuante, mas sim pelo quanto se revela dos próprios personagens. Para quem acredita piamente na ideia de inocência das crianças, melhor nem se aproximar de O Sítio, já que a crueldade ronda essa história de modo a surpreender sempre mais a cada nova cena.
O Sítio não se apoia muito nos diálogos, pelo contrário, seus silêncios são na maioria das vezes cruciantes e tenebrosos, inclusive os vem das crianças, que quase nada dizem sobre si mesmas. A direção não revela nuances psicológicas ou justificativas plausíveis, as ações se desenham a nossa frente sem maiores explicações. Somos convidados a tecer nossas próprias visões dos acontecimentos que vão se enfileirando para a nossa incredulidade.
Desde o início estamos diante de uma família, composta por um casal de meia idade e seus três filhos, sendo Martin o mais velho e o personagem mais decisivo no decorrer da trama. Chama a atenção nele sua piromania e sua compulsão pela destruição, realizada com uma frieza de dar medo. Suas ações colocam todos a sua volta em permanente risco. Fede, o irmão do meio, vive a angústia de não entregar o irmão mais velho, mas se tortura ao ver as consequências dos atos do irmão, que o torna cúmplice de suas ações violentas, e às vezes até criminosas.
Em um certo momento há uma discussão acerca de se contratar ou não uma firma de segurança especializada para a comunidade rural em que se passa a trama, para conter as invasões às residências. O personagem Thomás, contratado para ser o faz tudo dessa região bucólica composta por casas e organizada tipo um condomínio, é um personagem central por se relacionar com todos os moradores. Silvana Schnicer o trabalha como uma figura política e de equilíbrio da região, já que ele guarda segredos e intimidades de vários moradores.
Alguns expedientes utilizados por Silvana Schnicer apontam o filme para o terror, mesmo que ela ao mesmo tempo desvie dessa concepção, preferindo mais o realismo como proposta narrativa e o drama como último refúgio cênico. O Sítio caminha nesse fio tênue entre o terror e o drama, sem precisar ter que escolher entre um e outro. O assustador anda de mão dada com uma exploração dramática de uma família que prefere usar de subterfúgios para resolver os seus conflitos, muitas vezes jogando a sujeira para debaixo do tapete.
O Sítio se sintetiza nessa equação delicada entre o que é feito e o que se deveria fazer para resolver as questões que aparecem. Aqui, a Argentina de O Sítio se revela problemática, falsa e hipócrita. Um vizinho se preocupa em demasia com a segurança, enquanto o zelador do condomínio transa às escondidas com a sua esposa. Esse retrato cruel e perturbador é o que distingue essa obra. É curioso ver essa Argentina ser em parte desvelada por uma pequena comunidade no interior do país, não em um grande centro urbano. Ao final, ficamos a nos perguntar: que família de classe média é essa que estamos vendo? Na aparência, ela se parece com tantas outras que chega até a assustar. Quais seriam então os mecanismos que permitem a violência gratuita emergir com tanta força? Essa é a interrogação que O Sítio nos deixa como reflexão.

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