Texto por Marco Fialho
O Natal dos Silva nasceu de experiências de Gabriel Martins com a sua família e de histórias que ouviu dos amigos sobre a noite de Natal. De fato a série tem contornos realistas, embora haja momentos melodramáticos de grande impacto dramatúrgico. Como a série foi filmada em 2025, achei estranho não conter aspectos políticos recentes, como a polarização que dividiu tantas noites natalinas dos brasileiros nos últimos cinco anos, porém isso não tira a força dessa intrigante série, que foi para outros caminhos.
Um ponto forte de O Natal dos Silva é o seu elenco especial, com algumas caras que vem se destacando no cinema brasileiro recente, como Carlos Francisco (Geraldo), Rejane Faria (Bel) e Renato Novaes (Julio), embora o restante do elenco se saia muitíssimo bem, como Robert Frank (Luciano), Carlandréia Ribeiro (Lucia), Ítalo Laureano (Jesinho), Raquel Pedras (Lucimara), Norberto Novaes de Oliveira (Vanderlei) Thiago Augusto (Claudio), Marisa Revert (Vera) e sobretudo Aisha Brunno (Lin), numa interpretação comovente.
A série possui 5 episódios nessa primeira temporada, em que a direção é dividida pelo núcleo de diretores da produtora mineira Filmes de Plástico. Além de episódios dirigidos pelo seu criador Gabriel Martins, tem episódios dirigidos por Maurílio Martins e André Novaes de Oliveira. A série se passa no dia de Natal, o primeiro depois da morte da matriarca D. Zelina, o que mostra uma latente instabilidade emocional de todos os membros, inclusive uma fervorosa discussão sobre os destinos da própria casa onde morava a matriarca, a mesma que receberá todos os convidados para a festividade natalina.
A filha que cuidou de D. Zelina foi Bel (Rejane Faria) e ela se encontra estressada ao ver que a maioria das pessoas não a vê como uma nova liderança, que era o desejo de D. Zelina. Só que dentre os irmãos e irmãs os conflitos estão a solta e a série aborda essas inevitáveis desavenças familiares. Mas o maior diferencial dessa família está para adentrar na família durante a noite natalina, é Lin, uma mulher trans, noiva de Luciano, filho de Bel, que logo de cara a rechaça ao chamá-la de visita estranha.
Lin é a grande personagem de O Natal dos Silva, um expressivo diferencial, por representar um novo modelo de família brasileira. Outro dado fundamental a frisar é que os Silva são uma família de pessoas pretas e suburbanas em Belo Horizonte, isto é, de preconceito eles entendem e vivenciam na pele. Há um notório estranhamento em relação a Lin, mesmo que ele venha disfarçado de uma aparente aceitação. Vale lembrar que a série inicia com o casal Luciano e Lin na intimidade da cama a conversar, e eles são inclusive os primeiros a chegar no evento familiar. Eles serão os elementos decisivos da noite, o que pode gerar conflito, mas que também surpreenderá no transcurso da festa.
A série se conforma como uma típica história de personagens, e eles abundam, os tios, sobrinhos e netos são muitos, o que faz dessa família algo complexo. O filme não foge de um cotidiano, de como cada um age em família, são tipos populares específicos, o do malandro, o do desempregado e do bem-sucedido, da viúva solitária, da solteirona, fora as personalidades diversas, como a irmã explosiva, a grosseira, a conciliadora, o inseguro e por aí vai. Uma família que poderia ser encontrada em qualquer esquina do Brasil aqui no Sudeste.
O Natal dos Silva trabalha essencialmente com os conflitos, as discórdias e os rancores do passado. Nesse ponto, a série se referencia muito por acontecimentos mal resolvidos do passado, afinal, qual família não tem seus problemas e ressentimentos para chamar de seus, ainda mais aquela família numerosa cujos anos só alimentaram as diferenças, os segredos e até os ódios. Mas a série sabe sempre ressalvar aqueles pequenos gestos de carinho em meio a tantas agressões que vão naturalmente se acumulando.
Mas há algo em Lin que sobressai e não é só a sua condição de mulher trans, e sim o seu desejo irrefreável de ter uma família, já que a sua original a renegou e ela não vê há mais de 7 anos. Mesmo no meio do caos é possível notar que existe sempre a admiração dela pela aquela confusão e discussões intermináveis. E tem mais, Lin se agarra a oportunidade de ser aceita e não medirá esforços para isso, nem que precise engolir inúmeros sapos. Nenhum personagem transborda mais afeto do que ela e no meio de tanto barulho não se furtará a conciliar até com as diferenças e atitudes intolerantes.
O Natal dos Silva segue a tradição das obras da Filmes de Plástico, focado no retrato do cotidiano das famílias suburbanas, de uma câmera entregue para que os atores possam brilhar. No episódio 1, o diretor Gabriel Martins apresenta os personagens principais da série: Bel e seu filho Luciano, com a namorada Lin; Claudio, o filho que vive de instalar netcat; Lucia, a irmã que rivaliza violentamente com Bel; e Jesinho, o irmão adotado que vive nos Estados Unidos como ator. Mas é a casa que se revela como a maior protagonista, o espaço onde afetos e desencontros acontecerão.
Assim que inicia o episódio 2, vamos conhecendo outros personagens, como Geraldo e seus filhos. O Natal dos Silva experimenta uma narrativa em que vai apresentando os personagens e já vai os colocando nos conflitos da família, por isso esse episódio transcorre com o advento de vários novos personagens. Dirigido por Maurílio Martins, a grande surpresa dele é o fato de ter sido filmado em um único plano sequência, mas curioso como esse adendo técnico não enrijece a narrativa, fundamentalmente porque Maurílio Martins sabe se aproveitar do excesso de personagens para desviar a câmera que fica permanentemente em movimento e isso confere uma dinâmica para se introduzir o agito da festa e a simultaneidade de fatos que acontecem durante a festa e nos encantar com os diferentes pontos de vistas.
O que fica evidente nesse segundo episódio é que o núcleo da briga perpassa os herdeiros da casa, assim como muito dos conflitos advém desse grupo. Esse é, sem dúvida, um dos melhores da série. Um dos detalhes mais interessantes de O Natal dos Silva são as fotografias que estão espalhadas pela casa e que forçam a lembrança de outros tempos e detonam a saudade da matriarca morta recentemente. O clima de tensão vem muito desse ser o primeiro Natal sem a matriarca. E a cada instante dá para sentir um peso no ar, uma provocação e as birras que escapam pelas bordas, às vezes como fofoca, ou até como atrito direto mesmo, principalmente entre as irmãs Bel e Lucia.
Bel carrega infinitas amarguras do passado, tenta ser forte em cada momento, mas só consegue mostrar o quanto frágil e insegura ela é. Fala verdades em momentos errados e assim gera muitos conflitos. O episódio 3, dirigido por André Novaes Oliveira, deixa bem claro esse papel de Bel na família e é no amigo oculto que tudo isso aflora, onde as dores são mais pisadas e repisadas por todos. O episódio 4, outro dirigido por Maurílio Martins, talvez seja o mais fraco, por apenas salientar as discórdias e brigas dos episódios anteriores. Ele só deixa extremada a situação de antes, mas dramaturgicamente ele não é tão interessante quanto os outros.
Entretanto, no último episódio o melodrama explode e mostra mais a sua cara, onde a tradição cristã do nosso povo igualmente aparece, com sua tendência ao perdão e a superação. A origem humilde aparece na conversa de Geraldo, quando ele conta a história do jogo de pratos que eles usavam apenas no Natal, que remonta à época que sua mãe trabalhava como empregada na casa de uma família rica, que a humilhava. A presença de Lin, mostra outra pessoa vinda de origem humilde, sua família trabalha numa fazenda no interior do Estado de Minas Gerais. Nesse episódio derradeiro as fichas da família começam a cair e as contas serão acertadas pelos seus membros. São trajetórias que historicamente necessitam de cooperação, que cresceram nela e precisam voltar a recorrer a ela para cada um poder seguir seus caminhos depois dessa noite tão reveladora e difícil para a maioria deles.
Por mais que muitos personagens brilhem no último episódio, a maior presença é mesmo a de Lin, em especial nas cenas em que divide com Bel. Aisha Brunno e Rejane Faria fazem uma interpretação tocante e a cena em que Lin ajeita o cabelo de Bel no quarto, para ela retornar à festa, é uma das mais sensíveis de O Natal dos Silva, em que Bel abre o seu coração endurecido pela vida. O melodrama aparece para moldar com requinte uma narrativa tomada pelo afeto, aliás como deve acontecer no melodrama, e a trilha musical entra na hora exata para criar uma ambiência de extremo bom gosto. Gabriel Martins cuida de cada detalhe, salientando a emoção como um traço importante a guiar a narrativa final. O Natal dos Silva se mostra uma série de muita sensibilidade e profundamente humana ao adentrar numa família que se transforma pelo afeto para continuar sobrevivendo.
O Natal dos Silva não deixa de ser herdeira e de mostrar o parentesco com outros programas de sucesso da TV brasileira, como a A Grande Família, Sai de Baixo, Toma Lá da Cá, que tentam de alguma maneira sintetizar elementos que caracterizam a família sudestina no país. Entretanto, se esses estavam voltados para uma família de classe média branca, a série capitaneada por Gabriel Martins volta-se para o retrato da família suburbana e afrobrasileira em Belo Horizonte, aquela que se ergueu na luta para sair da miséria, para superar a origem de pessoas que foram escravizadas e que por isso mesmo revela que alguns de seus membros ainda capenguem para sobreviver. O Natal dos Silva é um feito inédito por esse prisma, e precisa ser vista como um espelho a refletir a constituição de tantas outras famílias desse país. E ao agregar Lin, a família Silva só passou a ser mais diversa e plural. Uma família coerente com a cara do Brasil no Século XXI.

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