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ENTERREM SEUS MORTOS (2024) Dir. Marco Dutra


Texto por Marco Fialho

A marca registrada de Enterrem Seus Mortos, novo filme de Marco Dutra, o que mais chama a atenção nele é o seu estranhamento. Desde a primeira sequência, um acidente envolvendo uma carro, uma moto, uma carroça de palhoça e um cavalo, somos apresentados ao inusitado, não só pela maneira como a sequência é encenada, mas também pela curiosa ação dos intérpretes, especialmente a de Selton Melo como Edgar Wilson, um homem que trabalha recolhendo corpos de animais mortos pelas estradas. O melhor dessa sequência é voltar a pensar nela depois que saímos da sala de cinema, de tentar imaginar o impacto dela no que veio depois. E refletir sobre o sentido mórbido desse começo será um bom guia para que acompanhemos a trama até o seu fim. 

De certo, a sequência inicial de nada destoará de tudo o que veremos até o final do filme. A opção de Dutra não é a de explicar muito o que vamos vendo no transcurso da obra e sim ir deixando fios desencapados soltos para que nos arrisquemos, na medida do possível, a amarra-los ao final. A divisão em sete "episódios" de nada servem igualmente de apoio para o público, na verdade eles só servem talvez como uma espécie de contagem regressiva de 7 até 1, talvez, quem sabe, para anunciar um possível fim do mundo que se aproxima.  

Dutra trabalha frustrando constantemente as nossas expectativas. Edgar Wilson se estabelece como um protagonista nada carismático, ele não sorri nunca, não pisca, nem quando está com Ivonete, ou simplesmente Nete (Marjorie Estiano), sua simpática e apaixonada chefe no ORAM (Órgão de Recolhimento de Animais Mortos), embora planejem juntos uma fuga da pequena cidade de Abalurdes. Ele não demonstra amor ou sentimentos próximos do acalorado, sua frieza é estarrecedora. Edgar Wilson chega a dizer que se atraiu por Nete porque ela tem um coração grande, mas isso não se referia a uma suposta bondade dela, e sim uma síndrome que aumenta o seu coração, podendo levá-la à morte pelo tamanho avantajado do músculo. Enfim, o que lhe atraíra nela era uma deformidade física, algo que dizia muito mais sobre ele.  

Das poucas coisas explicadas em Enterrem Seus Mortos, uma delas é relevante, como a que esclarece que Edgar Wilson teve um padrasto matador de aluguel, e que com ele aprendeu o mesmo ofício, tendo matado muita gente antes de conhecer Nete. Essa fase, deixada em parte no passado (bom lembrar que na primeira sequência ele mata friamente um animal), engendrou marcas profundas em sua personalidade e uma sequela visível: um sonambulismo recorrente, sempre relacionado com as mortes que realizou. Edgar Wilson por mais frio que aparente ser, é sim uma pessoa em busca de redenção, por mais que não saiba como atingi-la. A relação com Nete mostra bem isso, mas como pensar no futuro tendo tantas perturbações no presente. 

Edgar Wilson é construído como um personagem demoníaco, mas quando pensamos nas práticas ritualísticas dos cultos da estranha seita, que ele tem acesso por meio de Nete e de sua tia Helena (Betty Faria), uma fanática que quer obrigá-lo a aderir aos rituais, que lembram algo perto do satânico. Enterrem Seus Mortos ainda se apoia em um registro de ficção científica, de como a fuga para um outro planeta, tal como professa o personagem que dirigia o carro que se acidenta logo no início, Vitor Simalha (Caetano Gotardo), que depois aparece morto no laboratório experimental de uma doutora (Majeca Angelucci). Esse lugar mórbido, inclusive, tinha a proposição de tornar mais belas as pessoas que morriam. A perturbação disso é notória, afinal, para que embelezar uma pessoa depois de morta e já sem vida?           

Tudo em Enterrem Seus Mortos soa artificial e estranho, a começar pela fotografia do grande fotógrafo Rui Poças, que se utiliza de filtros para colocar cores que tornam a ambiência irreal, como se estivéssemos vivendo um pesadelo. Até o branco dos figurinos da seita religiosa soa como algo fora do mundo, com pessoas agindo como autômatos, como se estivessem enfeitiçadas. Essa realidade surreal da seita não deixa de nos remeter a algumas de nossas religiões evangélicas, cegas com suas profecias apocalípticas e suas visões de fim de um mundo imerso no pecado.

Talvez as ideias postas em prática por Dutra em Enterrem Seus Mortos aproximem mais o filme de uma parábola, de um planeta que caminha sistematicamente para o fim, e provavelmente mais por seus valores morais, já que de nada adianta se crer numa religião ou qualquer outra atividade humana, se a sociedade continua naturalizando a morte sistemática do outro. Em algum momento, a personagem Verônica, de Julia Katharine, diz para Edgar Wilson: "o mundo acabando e eles querendo criar religiões". O ser humano não tem limites e se supera constantemente quando o tema é o absurdo e o imponderável. 

Essa é uma obra que pode chocar pelo estranhamento e por nada ser muito explícito, nem muito explicado, o que a difere de outras de Dutra, como O Silêncio do Céu (2016), Quando Eu Era Vivo (2014) e os seus trabalhos com Juliana Rojas, como Sinfonia da Necrópole (2014), As Boas Maneiras (2017) e um pouco menos com Trabalhar Cansa (2011), e isso pode frustrar quem o idolatra por seguir justamente esses caminhos, mas essa é uma surpresa boa, a de não atender as esperadas expectativas tanto do público quanto da crítica e esse é um risco saudável, ao meu ver, de se desafiar, mesmo que o resultado não seja o mais convincente. 

Em Enterrem Seus Mortos temos a surpresa do imponderável e uma preocupação em não deixar o espectador se identificar com os personagens. Tudo é tão pessimista, como se o mundo já houvesse acabado e estivéssemos apenas vendo umas das histórias, entre tantas possíveis, sobre esse fim. Como apagar tantas mortes de Edgar Wilson, se o próprio as traz grudadas na testa e na consciência, isso já seria em si uma forma de fim do mundo. Enterrem Seus Mortos é muito sobre isso, da impossibilidade do mundo em apagar as pistas dos crimes que se cometeram, e ainda se cometem, sobre a sua superfície. 

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