Pular para o conteúdo principal

CRIME DE AMOR (1974) Dir. Luigi Comencini


Texto por Marco Fialho

Conhecia o diretor Luigi Comencini por seu trabalho mais famoso, o ótimo Pão, Amor e Fantasia, com os exuberantes Vittorio De Sica e Gina Lollobrigida. Confesso que Crime de Amor (1974) me surpreendeu positivamente e para além de qualquer expectativa. A história é capitaneada pelo astro Giuliano Gemma (Nullo), famoso pelos diversos faroestes spaguettis que protagonizou, e pela jovem Stefania Sandrelli (Carmela), dois operários que estabelecem uma relação amorosa numa Milão industrializada dos anos 1970. 

A direção de Comencini é preciosa pela maneira habilidosa como ela se desenha desde o início. O filme começa com um suposto tiro, que não compreendemos muito bem da onde vem e pra onde vai, pois logo há um corte que nos leva do som do tiro para o som das máquinas de uma fábrica. Pode parecer que esse corte foi pensado como uma transição sonora, mas ao final do filme entendemos que esse corte inicial é bem mais complexo, ele possui uma linha de pensamento, como se o tiro fosse consequência de um processo no qual a fábrica estava implicada.

A força dramática de Crime de Amor é assim construída a cada cena filmada por Comencini, mas de tal forma genial, que só nos damos conta de sua amplitude política visceral apenas na última cena do filme. O central do transcorrer da história em si é um caso de amor envolvendo Nullo e Carmela. Aos poucos, somos levados a conhecer os pormenores desse amor quase impossível, entre um homem do norte com uma mulher jovem vinda do sul da Itália. Essa disparidade, que está no cerne das questões sociais italianas, onde o norte é uma região industrializada e o sul agrária, permeia todas as tensões no seio do filme. O filme de Comencini visivelmente estabelece uma relação espiritual com o neorrealismo italiano dos anos 1940, o movimento mais influente da história cultural italiana. 

As tecituras dramáticas são preciosas em Crime de Amor, há um misto de sensualidade e drama muito bem costurados na narrativa. A interpretação de Stefania Sandrelli consegue criar uma ambiguidade de uma personagem que ora sabe o que quer e ora nos deixa confusos quanto as suas intenções. Essa confusão também atinge ao personagem de Nullo, que fica girando feito uma barata tonta em volta dela. Para quem está acostumado a ver Giuliano Gemma no faroeste irá estranhar ao vê-lo convencer também como um operário fabril, oriundo de uma família anarquista.

Crime de Amor trabalha com uma contínua fricção política, mesmo que ela fique subjacente e jamais venha inteiramente à tona. Quando descobrimos que Carmela estava envenenada por produtos que entrou em contato no trabalho, o viés político explode, a discussão envolvendo greves, que estavam ecoando pelas beiras vem para a superfície e dá um outro tom para a história de amor de antes. 

A industrialização e o clima de opressão na fábrica ficam pairando, como um fantasma a sufocar as relações de trabalho. O assédio do chefe e o machismo de um sistema que menospreza as mulheres e sua força de trabalho. O ambiente fabril como um todo é nada saudável, com médicos que representam o interesse do lucro, não dos operários. Quando Nullo e Carmela vão em um rio que antes da fábrica era com águas límpidas e propício para um banho, logo se vê o quando a sujeira fabril assoreou suas margens e tornou o local impraticável para qualquer atividade humana.  

A câmera de Luigi Comencini prioriza filmar os personagens do casal em planos próximos e outros em planos médios e gerais. A tragédia chega pela fábrica, impede a concretização do amor entre o casal e se estabelece como um ícone da infelicidade entre as pessoas. O preconceito do norte em relação ao sul aparece em várias cenas e revela muitas contradições da sociedade italiana que almeja ser forte e industrial, apesar de todo o atraso educacional e as disparidades latentes. 

Crimes de Amor é um filme que trata do amor, sem esquecer que as relações mais íntimas muitas vezes são engendradas por outras camadas sociais e até políticas, especialmente quando os interesses do lucro se colocam à frente de tudo e todos. Comencini sabe como entrelaçar sentimentos, política e preconceitos como poucas vezes o cinema realizou. O que se mostra como uma mera história de amor, explode em um grande manifesto político contra a ambição desmedida do capitalismo.     

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

CINEFIALHO - 2024 EM 100 FILMES

           C I N E F I A L H O - 2 0 2 4 E M  1 0 0 F I L M E S   Pela primeira vez faço uma lista tão extensa, com 100 filmes. Mas não são 100 filmes aleatórios, o que os une são as salas de cinema. Creio que 2024 tenha sido, dos últimos anos, o mais transformador, por marcar o início de uma reconexão do público (seja lá o que se entende por isso) com o espaço físico do cinema, com o rito (por mais que o celular e as conversas de sala de estar ainda poluam essa retomada) de assistir um filme na tela grande. Apenas um filme da lista (eu amo exceções) não foi exibido no circuito brasileiro de salas de cinema, o de Clint Eastwood ( Jurado Nº 2 ). Até como uma forma de protesto e respeito, me reservei ao direito de pô-lo aqui. Como um diretor com a importância dele, não teve seu filme exibido na tela grande, indo direto para o streaming? Ainda mais que até os streamings hoje já veem a possibilidade positiva de lançar o filme antes no cinema, inclusiv...

AINDA ESTOU AQUI (2024) Dir. Walter Salles

Texto por Marco Fialho Tem filmes que antes de tudo se estabelecem como vetores simbólicos e mais do que falar de uma época, talvez suas forças advenham de um forte diálogo com o tempo presente. Para mim, é o caso de Ainda Estou Aqui , de Walter Salles, representante do Brasil na corrida do Oscar 2025. Há no Brasil de hoje uma energia estranha, vinda de setores que entoam uma espécie de canto do cisne da época mais terrível do Brasil contemporâneo: a do regime ditatorial civil e militar (1964-85). Esse é o diálogo que Walter estabelece ao trazer para o cinema uma sensível história baseada no livro homônimo de Marcelo Rubens Paiva. Logo na primeira cena Walter Salles mostra ao que veio. A personagem Eunice (Fernanda Torres) está no mar, bem longe da costa, nadando e relaxando, como aparece também em outras cenas do filme. Mas como um prenúncio, sua paz é perturbada pelo som desconfortável de um helicóptero do exército, que rasga o céu do Leblon em um vôo rasante e ameaçador pela praia. ...

MOSTRA CINEBH 2023

CineBH vem aí mostrando novos diretores da América Latina Texto de Marco Fialho É a primeira vez que o CineFialho irá cobrir no modo presencial a Mostra CineBH, evento organizado pela Universo Produção. Também, por coincidência é a primeira vez que a mostra terá inserido um formato competitivo. Nessa matéria falaremos um pouco da programação da mostra, de como a curadoria coordenada pelo experiente Cleber Eduardo, montou a grade final extensa com 93 filmes a serem exibidos em 8 espaços de Belo Horizonte, em apenas 6 dias (26 de setembro a 1º de outubro). O que atraiu o CineFialho a encarar essa cobertura foi o ineditismo da grande maioria dos filmes e a oportunidade mais do rara, única mesmo, de conhecer uma produção independente realizada em países da América Latina como Chile, Colômbia, México, Peru, Paraguai, Cuba e Argentina, sem esquecer lógico do Brasil.  Lemos com atenção toda a programação ofertada e vamos para BH cientes da responsabilidade de que vamos assistir a obras di...