Texto por Marco Fialho
Apolo simplesmente é um filme carismático, que sabe cativar o espectador não só pela história original que trata, a da gravidez de Lourenzo, um homem trans, e de Isis, uma mulher trans, como pela forma narrativa endereçada diretamente a Apolo, o filho que está prestes a vir ao mundo.
A direção, dividida entre Tainá Müller e Isis Broken, acerta em cheio em adentrar no registro da vida cotidiana desse casal que choca parte do mundo pelo fato de Lourenzo ser um homem grávido, a exibir sua imensa barriga. O filme inicialmente entra na casa de Isis em Sergipe, para mostrar a vida a dois do casal e a relação amorosa deles com a família de Isis, que aceitou a transição dela. Socialmente, o casal passa por muitas dificuldades no local, especialmente com hospitais despreparados para tratar da gestação de pessoas trans.
O grande motor de Apolo é o afeto, aquele em que mãe e pai destinam aos seus filhos, mas também os que flutuam entre Isis, Lourenzo e Apolo. O filme percorre esse percurso de descobertas e respeitos que são precisos para que as emoções possam se estabelecer. Isis expõe seu medo de ir para São Paulo devido o convívio com a mãe de Lourenzo, que havia tido problemas com a transição de filha para filho. Mas o novo casamento da mãe com um outro homem, mais aberto ao diálogo facilitou as conversas e a aceitação. Ver o filho grávido também ajudou no processo, da perspectiva de ter um neto.
As diretoras discutem as emoções do casal, mas não perde a referência de que Apolo é sobre corpo, pertencimento e saber aceitar as demandas de cada um dos envolvidos. É bastante interessante as colocações que o filme se permite sobre as transformações hormonais dos corpos, sempre tendo os diálogos como uma mediação importante como consequência do próprio afeto. A câmera, na maior parte do filme, é colocada mais à distância, para dar mais liberdade de movimento aos dois protagonistas e para que se consiga esquecer da câmera, tudo é captado com certo distanciamento, mesmo que essa não seja uma proposta dogmática das diretoras, pois há certas cenas onde o close é acionado, como em cenas onde o afeto entre os personagens é mais explícito.
Apolo se permite a não fugir dos conflitos sociais que está no entorno de Lourenzo e Isis. O ódio em relação ao casal é algo real e inevitável. O preconceito ao ver um homem como o gestador é sentido na pele e as imagens não deixam pairar dúvidas do ódio que as pessoas sentem por corpos transgêneros. A agressão a Lourenzo e Isis está registrada em imagens fortes e discussões descabidas pelos agressores sobre o que é a natureza humana. O próprio sistema de saúde em Sergipe não reconhece o direito de Lourenzo se tratar como grávido, já que os computadores sequer aceitam a inclusão do nome dele como o gestador (o próprio editor ortográfico aqui do texto, marca gestador como erro), mesmo sendo lei aprovada.
Tainá Müller e Isis Broken tratam sem subterfúgios de temas sensíveis como a transfobia e a não binaridade, que toda a vez que vem à tona provoca uma ira desproporcional e violenta de boa parte da sociedade. Por isso, filmes como Apolo são essenciais para sensibilizar a aceitação da alteridade, para humanizar personagens vistos como uma anomalia. O filme os torna próximos de nós, permite a inclusão deles no mundo, sem que se precise pedir qualquer tipo de licença a quem quer que seja.
O documentário mostra ataques transfóbicos, inclusive de um motorista de Uber, o que leva o casal a decidir sair pouco de casa pensando em defender Apolo, não pô-lo em risco de uma agressão física que o matasse. Apolo evidencia o porquê do Brasil ser o país que mais mata trans e percebe-se sempre a tensão no entorno do casal quando sai à rua.
Como a família de Isis sempre a apoiou e incentivou, inclusive na carreira artística de cantora, Apolo traz essa leveza e depois em Sampa, o encontro com a mãe de Lourenzo reafirma o quanto o acolhimento faz do filme um documento repleto de docilidade, mesmo que isso não seja reconhecer a dureza do mundo quando se transpassa a porta de casa. Tem uma frase de Isis que ilustra muito bem Apolo: "eu nasci de mim mesma", no sentido de que sua transgeneridade só poderia ser uma decisão e um ato afirmativo dela e de ninguém mais. E o melhor é o quanto esse filme ainda é uma oferenda para Apolo, que já nasce devidamente amado e querido, embora também seja um bálsamo poético para um público mais amplo.

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