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A QUEDA DO CÉU (2024) Dir. Eryk Rocha e Gabriela Carneiro da Cunha


Texto por Marco Fialho 

A Queda do Céu, dirigido por Eryk Rocha e Gabriela Carneiro da Cunha, possui um desenho narrativo complexo e interessante, já que concilia a visão de Davi Kopenawa sobre o seu povo, os yanomami, com o olhar de Eryk e Gabriela sobre a cultura de um povo que precisa cada vez mais conhecer o mundo para além de sua aldeia, para poder resistir ao constante ataque dos ambiciosos invasores brancos, querendo tomar as riquezas minerais e naturais do solo amazônico. 

O filme mostra a difícil convivência dos indígenas com a cultura e o poder brancos, uma aproximação destrutiva em vários níveis. A sedução é grande e alguns cedem à promessa de riqueza e vão trabalhar com garimpeiros. O bom de A Queda do Céu é essa não idealização que os diretores imprimem, inclusive de mostrarem como os yanomamis desconfiam da honestidade da equipe de filmagem, se eles não estariam ali para repassar informações sobre a vida dos indígenas para que se estruturasse um ataque contra eles ou mesmo tivessem algum interesse escuso nessa aproximação. 

A dupla de diretores realiza um trabalho muito delicado para costurar as vozes dos yanomami, em especial a voz de Kopenawa. A Queda do Céu é um filme também sobre o tempo dessa comunidade, sua relação com o trabalho, com as divindades e entre os antepassados e os mais vividos. Há um destaque das vozes, que na maioria das ocasiões aparecem em off. O medo de uma invasão ou agressão eminente dos garimpeiros ou qualquer outro grupo branco ambicioso, que eles chamam de napë, é intenso e constante, registrado em entrevistas e conversas pelo rádio, um dos meios de comunicação usado entre as tribos próximas.

O próprio título do documentário é inspirado pelo livro homônimo que Davi Kopenawa, Xamã yanomami, se declara ao mundo por meio de um pacto firmado com o antropólogo francês Bruce Albert, para que o seu apelo fosse ecoado pelo planeta. O filme não deixa de ser outro pacto para que as vozes de resistência e luta pela terra chegue a mais pessoas, como um grito contra os interesseiros napë (os brancos), apenas querendo invadir as terras para implantar sua visão de "povo da mercadoria". O filme mantem uma estrutura dialógica bem parecida com o do livro, o de dar voz em primeira pessoa aos povos yanomami e de interagir e conviver com eles, sem impor narrativas alheias a eles.

A Queda do Céu é um desabafo, um grito de desespero, mas também um alerta de que a destruição dessas terras indígenas pode levar o mundo para o seu fim, daí a referência do título ao céu literalmente desabar sobre as nossas cabeças, pois esse é um fato não controlado pelos invasores e sim por deuses que responderão violentamente a esse ataque contra a natureza em geral. 

Por isso, vejo A Queda do Céu como uma obra educativa, um aula de como devemos tratar a natureza, mesmo que não há nada de didática na narrativa adotada pelos diretores do filme, muito pelo contrário, existe a busca de uma poética nessas imagens produzidas, muitas delas repletas de lirismo. São lindas as vezes que a câmera é apontada para o céu à noite e avistamos a beleza que perdemos nas grandes cidades, daquele mundaréu de estrelas a nos engolir e a pedir respeito por forças que estão literalmente acima de nós. Inclusive, vários planos nos chegam em contra-plongée, que sensivelmente nos ajudam a integrar terra e céu. Mas há ainda muitos planos desfocados, talvez para nos lembrar o quanto estamos enxergando mal esse mundo que deveria ser exemplar para pensarmos outras formas de se relacionar com espécies, seres vivos em geral e entre nós mesmos.             

É muito bonito como Eryk Rocha e Gabriela Carneiro da Cunha captam não só as imagens, mas igualmente os sons que vem da mata, dos rios e bichos, que formam uma tecitura que se juntam aos depoimentos. É surpreendente como se absorve em A Queda do Céu o silêncio e o tempo como expressões de uma cultura que observa e extrai daquele universo uma maneira muito própria de se relacionar com cada ser vivente que está a sua volta. É uma comunhão a ser apreendida, um ato de respeito com o entorno em que se vive.  

Contudo, A Queda do Céu nos permite ver e ouvir rituais próprios da cultura yanomami e as formas que levam os yanomami para mundos oníricos, como o pó de yãkoana, um tipo de um rapé que os Xamãs ingerem para os fazer sonhar e se relacionar com espíritos da floresta-terra, uma forma de conhecimento ancestral que o reafirmam como povo e coletividade, que os fazem ver a grandeza das árvores, das estrelas, da água e das rochas. O filme traz essas belezas que desconhecemos, que ignoramos, mas que estão lá e nos ajudam a viver melhor, mesmo que sejamos alienados delas.     

Mas infelizmente, há o desespero pelos incêndios criminosos, pela invasão por interesse econômico, a ambição capitalista. O documentário mostra como a agressão capitalista branca obrigou aos povos indígenas ter que sair de seu mundo imerso de antes para compreender o próprio funcionamento da sociedade que o invade. Entender como funciona e se organiza o sistema que sempre os oprimiu, mas que agora ameaça a própria existência dos povos originários. Abrir uma guerra com armas seria algo inútil, tal a desproporção das forças em jogo, o que faz necessário empreender outras formas de luta, como o filme, a pressão política direta e daí a importância de estudar o mecanismo de poder do homem branco.   

A Queda do Céu mostra um estágio realmente novo, que funciona como um caminho inverso, onde os indígenas precisam dominar os códigos culturais do invasor para não só reivindicar direitos, mas construí-los numa luta dentro do campo políticos dos brancos. Não casualmente, vemos a entrada de integrantes dos povos indígenas na política brasileira, como deputados federais, como 4 mulheres indígenas eleitas no pleito de 2022. 

É incrível que filmes como A Queda do Céu nos permitam enxergar formas de integração com a natureza cada vez mais distantes de nós e que representam nossas esperanças de uma outra vida. Formas de viver como as do yanomami são como santuários a nos clamar por uma vida ainda possível. Será que conseguiremos aprender com essas culturas evoluídas espiritualmente como lidar com o meio ambiente, como extrair dele a subsistência, a cura para diversos males e como se pode viver com paz e respeito? Essa é a pergunta que A Queda do Céu nos deixa como provocação. 

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