Texto por Marco Fialho e Carmela Fialho
A Natureza das Coisas Invisíveis se traduz como uma bela poesia do viver durante um processo de passagem de uma idosa da vida para a morte. A diretora Rafaela Camelo narra com extrema sensibilidade e sutileza a trajetória de duas crianças de 10 anos, Sofia (Serena) e Gloria (Laura Brandão), cada uma a enfrentar os seus desafios de vida e a enfrentar o luto.
Sofia e Gloria se encontram em um hospital em Brasília, onde a mãe de Gloria, Antonia (Larissa Mauro) é enfermeira e a mãe de Sofia (Camila Márdila) precisa internar sua avó (uma interpretação excepcional de Aline Marta Maia) na emergência. Elas ainda não sabem o quanto ambas são desgarradas da sociedade, uma se sente deslocada por ser uma menina trans e a outra é obesa e precisou recentemente de um transplante de coração. Essas são coisas que não vemos logo de cara, mas que no decurso do filme descobriremos.
A Natureza das Coisas Invisíveis se divide em duas partes: uma primeira urbana, que se passa em um hospital; e uma segunda rural, no sítio em que mora a bisavó de Sofia, numa área no interior de Goiás. Na primeira, se anuncia o drama de cada personagem, e na segunda, as personagens resolvem tirar férias e aproveitar para cuidar da saúde da idosa. É nesse local mais reservado e bucólico que ocorre a interiorização das personagens e o aprofundamento da amizade entre as meninas e das respectivas mães, acrescentando ainda as vizinhas e seus conhecimentos ancestrais sobre curas com ervas e a arte das benzedeiras.
A Natureza das Coisas Invisíveis estabelece uma visível dicotomia entre a vida caótica nas grandes cidades e uma possibilidade de maior contemplação no ambiente rural, nesse último, com uma perspectiva de aproximação e cuidado entre todos, reafirmada pela bela música de Nelson Ângelo, Fazenda, cantada pela voz dilacerante de Milton Nascimento. Esse é o momento em que somos transportados para o ambiente mágico e místico das ervas, das árvores, das frutas, dos animais, da simplicidade e do afeto.
A Natureza das Coisas Invisíveis, como diz o título do filme, trabalha com as humanidades sensitivas, adentra no universo da morte e da vida de várias maneiras. O entrecruzamento das personagens femininas é o mote da obra, que carrega relações profundas e conflituadas entre mães e filhas. Uma está revoltada com a mãe que a leva para as emergências dos hospitais, onde transitam pessoas doentes e mortas, algo pesado para ela que passou pelo trauma de um transplante. A outra, leva um rancor pelo fato da mãe não aceitá-la como gênero feminino e a acusa de impor à avó uma cidade que nada representa para ela.
Gloria, transplantada do coração, constantemente vê um porco, sugerindo que seu coração foi transplantado do animal, que se ratifica no final, quando ela desenha um porco com uma cicatriz igual a que carrega perto do coração. A amizade de Gloria com Sofia se torna algo mágico, uma possibilidade de que a vida pode ser viável para ambas. Há um trabalho fantástico de roteiro e de câmera, para salientar esse sítio como um espaço propício para se viver os últimos instantes de vida da bisavó de Sofia. Sim, porque a morte exige respeito e zelo e isso está perfeitamente calculado no filme. Como o sítio igualmente se torna o lugar ideal para fazer a encomendação da alma de Bento, nome de nascença de Sofia.
Apesar de tratar de temas delicados e de difícil abordagem, como o de entender a questão da morte, de gênero, de aceitação do corpo, do cuidado com os idosos doentes e de criar crianças sem pais, A Natureza das Coisas Invisíveis perpassa tudo isso com extrema sensibilidade e cuidado. Ainda insere personagens fascinantes, como o Sr. Osvaldo, um dos internados no hospital, que denuncia as inúmeras mortes de operários ocorridas à época da construção de Brasília, que dizia para Gloria que ela era uma menina maravilhosa e especial. Um filme que mostra a difícil tarefa de sermos nós mesmos e da arte de se aceitar o outro como ele é.

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