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A MEMÓRIA DO CHEIRO DAS COISAS (2025) Dir. António Ferreira


Texto por Marco Fialho

A Memória do Cheiro das Coisas discute a difícil arte de envelhecer, e mais ainda, da arte de encarar o final da nossa existência com o mínimo de dignidade. Arménio (José Martins, um ator soberbo que eu não conhecia) é um homem nessas condições, ávido por viver, por ter autonomia, mas precisa conviver com um grave enfisema pulmonar por ter abusado do fumo durante a sua vida. O personagem ainda precisa viver com os fantasmas do passado, já que lutou em Angola a favor do colonialismo português.

Um dos pontos magníficos de A Memória do Cheiro das Coisas é como a direção encara a vida e a nossa capacidade de aprender coisas sobre convívio, respeito e amor, independente da nossa idade e condição social. A nossa capacidade de aprender está ligada à própria necessidade de viver, é praticamente involuntária, aprendemos sempre, mesmo sem pedirmos e António Ferreira explora isso com extrema beleza e imprevisibilidade. 

Se podemos pensar que um asilo representa o nosso fim e uma página em que nada mais é possível de acontecer na vida, A Memória do Cheiro das Coisas vem contradizer isso, com a inclusão da personagem Hermínia (uma Mina Andala, fabulosa), uma enfermeira portuguesa negra, que a princípio terá o ódio e a perseguição de Arménio, mas que surpreenderá com a bonita relação de amizade que nascerá entre eles e responsável por Arménio rever sua visão preconceituosa sobre os negros, proveniente de sua experiência como combatente na Guerra de Independência de Angola.

Seu Arménio é aquela pessoa de difícil trato, com traços de intolerância e desobediência. Quer fumar, independente de sua condição de saúde precária, e se impõe pela intransigência costumeira e contumaz. Não toma os remédios prescritos e tapeia os enfermeiros fingindo que está os ingerindo e não quer comer. A personalidade turrona dele é um tipo de invólucro que ele incorpora para melhor sobreviver com sua intolerância social. 

Mas nada mais eficaz do que a postura dos seres humanos perante aos fatos. Hermínia mostra-se uma enfermeira exemplar, com ele (lhe arruma um isqueiro e não lhe põe fraldas para dormir) e com todos os outros pacientes e abdica de ordens protocolares em prol dos enfermos. António Ferreira vai construindo essa personagem com planos precisos e fixos, sem exibicionismo e dando o protagonismo para quem deve. Essa mise-en-scène simples, e sem grandes rebuscamentos forçados, acrescenta realismo e destaque para os personagens que crescem aos nossos olhos. 

O que mais vale observar em A Memória do Cheiro das Coisas é o relacionamento de Arménio e Hermínia. As conversas entre eles são fantásticas e descortinam o pensamento crítico dela, o quanto de astúcia é possível captar das sentenças que profere em cada fala que faz. Hermínia explicita o quanto conhece o sistema de saúde de uma clínica para idosos, a maneira pela qual os médicos controlam os pacientes  e o quanto ela boicota tudo isso por absoluto respeito aos idosos em tratamento. 

Hermínia representa a lucidez diante tantos absurdos ali defendidos e praticados e Arménio percebe isso e valoriza, mesmo que tenha a princípio um pé atrás pelo fato dela ter a pele negra. Cada conversa entre eles é sensível e envolta de aprendizados de ambas as partes. O que efetiva uma amizade é essa capacidade de reciprocidade, a cumplicidade que se estabelece entre as partes e António Ferreira sabe como delinear essas relações constituídas em mão dupla. Essa dupla de personagens e atores é o que melhor sustenta o filme. Que parceria maravilhosa, que troca de energia e talento entre Mina Andala e José Martins, que química perfeita e abençoada para o filme. 

A Memória do Cheiro das Coisas acaba sendo um filme sobre como podemos, enquanto estamos vivos, reconciliar com o nosso presente revendo nossas relações com o passado. Lançar reflexões acerca da vida é sempre fundamental, tanto quanto a necessidade de estarmos conectados com afetos. Se despir de preconceitos em prol de relações mais verdadeiras, baseadas no cuidado e na amizade. Essas são memórias que os corpos trazem e que cultivam a vida de quem ainda caminha por esse mundo complexo e que guarda sentimentos preciosos sobre um percurso que sempre pode ser modificado e humanizado.   

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