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RUA MÁLAGA (2025) Dir. Maryam Touzani


Texto por Marco Fialho

A rebeldia é um dos temas mais interessantes e bastante propício ao cinema. E como é bom ver essa rebeldia estampada na tela. Rua Málaga é um ótimo exemplo de representação rebelde no cinema ao abordar a personagem Maria Ángeles (com uma Carmen Maura iluminada e plena em cena), uma idosa que decide não se curvar perante às imposições arbitrárias e limitadoras da filha. Esse é um filme francamente potente ao encarar a velhice sob um prisma de resistência e vitalidade.

Rua Málaga começa com a rotina da espanhola Maria Ángeles em Tânger, cidade marroquina que desde à época do General fascista Franco, foi tomada por espanhóis exilados. Essa rotina é interrompida pela chegada de Clara, filha de Maria Ángeles, que vem disposta a vender a casa da mãe que está em seu nome e determinada em por a mãe em uma casa de repouso. Ángeles aceita a princípio, mas logo arruma um jeito de sair de lá e voltar a habitar na casa que está à venda. 

A partir daí, o filme abre mão do tom dramático e assume uma faceta mais cômica. A luta de Ángeles pela casa será efetiva, com uma ocupação forçada e corajosa, pois a casa agora está vazia e os móveis colocados à venda numa loja de antiguidades. A constante ida de Ángeles a essa loja estreitará a sua relação com Abslam (Ahmed Boulane) e essa aproximação vai lentamente se transformando em uma chamada para o amor entre eles. 

O bom humor domina inclusive o crescimento do amor entre Abslam e Ángeles. Paralelo a isso, Ángeles tem uma ideia de fazer da casa um local para se ver jogo dos times espanhóis, o que rapidamente se torna um grande sucesso. Ángeles, com esperteza e bom papo leva até os policiais no papo, depois que o bar da esquina denuncia suas práticas ilegais, que retiram o público do bar concorrente. 

As cenas de amor entre Abslam e Ángeles além de serem de bom gosto, revelam-se de grande impacto visual, com closes em seus corpos e planos gerais deles nus. A diretora Maryam Touzani quer mostrar o quanto é bonito o amor em qualquer idade. O toque juvenil, típico de quem descobre o amor está presente nas cenas entre eles e como elas são bem realizadas, numa delas, a diretora corta uma cena de sexo para closes de churros ardendo na panela. Mais sensual que isso é impossível.

Frente ao autoritarismo e indiferença de Clara, Ángeles responde com uma vontade ilimitada de viver a vida, com toda a plenitude que cabe nela. Carmen Maura valoriza cada cena com o seu talento e vivacidade, seja no charme de se maquiar seja nos olhares sensuais quando provoca o solitário Abslam. A cena em que Maria Ángeles coloca um LP da cantora Dolores Pradera interpretando o clássico bolero Tu me Acostumbraste (de Frank Dominguez) é uma das mais comoventes e românticas realizadas no cinema, realçadas com uma fotografia merecidamente quente, com os devidos toques alaranjados. 

Deixei para o final, comentar as sucessivas cenas que há em Rua Málaga, onde Maria Ángeles vai visitar a irmã Josefa para se confessar. Essa irmã fez uma promessa de silêncio, o que torna ela uma confidente ideal. As cenas em que Ángeles esmiúça a transa dela com Abslam são hilárias. Por meio dessas confissões, somos informados de diversos aspectos da vida de Ángeles, que fala pelos cotovelos. A cena mais engraçada ocorre na morte da irmã, com Ángeles realizando do mesmo jeito de antes, a sua confissão, já que a irmã não falava mesmo. 

O que a diretora Maryam Touzani faz é compor uma obra em que reflete e reafirma a imposição da vida perante à ideia da velhice como antecipação da morte. Rua Málaga consegue conciliar leveza e afirmação da vida de uma só vez, o que é de grande valia. Se o filme começa meio morno, parecendo que não chegaria a embalar, de repente surpreende com um belo vigor narrativo. Carmen Maura, mais do que anjo se impõe como uma força feminina sensível. Não se perde muito em discussões, prefere se colocar pelas ações contagiantes da sua protagonista. 

  

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