Pular para o conteúdo principal

ROBERTO ROSSELLINI, MAIS DO QUE UMA VIDA (2025) Dir. Ilaria de Laurentiis, Rafaele Brunetti e Andrea Paolo Massara



Texto por Marco Fialho

Roberto Rossellini, Mais do Que Uma Vida é um filme admirável. A tríade de diretores Ilaria de Laurentiis, Andrea Paolo Massara e Raffaele Brunetti realizam algo original em um formato muito usual, o de mostrar a vida de um artista, seja ele de qual arte ele está inserido. Isso porque esse documentário foi pensado afinado com o próprio objeto de pesquisa, o diretor italiano Roberto Rossellini, um dos mais controversos e corajosos cineastas da história.

O próprio título dúbio de Roberto Rossellini, Mais do Que Uma Vida, já nos deixa uma pista sobre o seu processo criativo e de abordagem, o filme quer construir essa vida conturbada e intensa, de um artista apaixonado pelo que faz, mas igualmente determinado a não olhar para o que fez no passado e querer buscar sempre algo diferente que queira fazer no presente. Mas, ao mesmo tempo, tem o homem Roberto, que não ficou restrito a nada, múltiplo e ávido por se aventurar na vida e por ter mais conhecimento, um estudioso contumaz, implacável e imparável. O filme nos contagia, nos deixa empolgado por conhecer essa personalidade marcante e com uma energia sem igual. 

Um dos méritos de Roberto Rossellini, Mais do Que Uma Vida é o seu recorte surpreendente. Seria comum tratar do cineasta como o grande nome do neorrealismo italiano, movimento que transformou a história do cinema. Mas não, o filme prefere começar em meio ao relacionamento amoroso e profissional dele com Ingrid Bergman, até para mostrar que Rossellini era um homem voltado sempre para o que virá e não preso ao que já fez ou pensou antes. Essa dinâmica ditada pelo homem Rossellini é fantástica, em especial, o seu desapego pelo sucesso, por desacreditar no falso e temporário glamour do cinema. 

O filme mostra como Rossellini se constituiu como um artista sempre em movimento e inquieto. Sua capacidade de reflexão o fez questionar os grandes orçamentos que o aprisionava como artista, ele preferiu o baixo recurso e a independência de poder realizar os projetos que julgava serem os mais condizentes com o seu compromisso com o mundo. 

Creio que Rossellini, Mais do Que Uma Vida está disposto a isso, a mostrar como o homem Rossellini influenciava na figura do artista Rossellini, pela moral rígida e engajada por fazer o audiovisual algo abrangente e acessível a um número maior de pessoas e que pudesse ter um caráter educativo. Nesse viés, Rossellini questionou os caminhos comerciais do cinema e passou a lutar por um audiovisual que incluísse mais pessoas pela educação e conhecimento. Seus trabalhos históricos e educativos, inclusive voltados ao conhecimento científico pelo cinema são fundamentais para o pensamento sobre as finalidades culturais do cinema. 

Dentro dessa perspectiva mais ampla, Rossellini abraçou a televisão com uma convicção atroz de que esse seria um veículo crucial para a formação cultural do mundo e começou a investir em filmes para esse formato, que para ele diferia muito do cinema, tanto pelo maior alcance como pela linguagem que necessitava ser mais direta e educativa. Evidente que Rossellini ficaria frustrado em ver os rumos atuais da televisão, mas as suas ideias eram sim visionárias e de grande valor cultural.          

Roberto Rossellini, Mais do Que Uma Vida se preocupa em mostrar um homem e artista afeito às viagens e descobertas de possibilidades. As mulheres e casamentos fazem parte de sua história multifacetada, desde a relação com a grande atriz italiana do neorrealismo, como Anna Magnani, passando pela mega estrela Ingrid Bergman, e outras, como a indiana Sonali Dasgupta, Marcella De Marchis (figurinista de filmes), com quem teve o filho Renzo Rossellini, seu fiel colaborador. 

Muito interessante ainda como os diretores e diretoras capturam os depoimentos, alguns vindos de imagens de arquivo, com o próprio Rossellini e Ingrid Bergman, além de entrevistas em variadas épocas com ele. O filme também se aproveita de vozes de personagens ainda vivos, e esses olhares são importantes para acrescer informações sobre Rossellini. Outras falas partem de vozes que realizam uma narrativa em paralelo aos depoimentos por arquivo, como o do próprio Rossellini, por meio da voz do ótimo ator Sergio Casttelitto, em um trabalho impecável de ser a voz de Rossellini quando esta vinha de escritos deixados pelo nosso protagonista ou ainda quando ouvimos a voz da filha, a também atriz Isabella Rossellini, em off, falando sobre sua emocionante relação com o pai, que morreu pobre em dinheiro, mas rico em contribuições artísticas e coragem de fazer o que queria fazer.   

Roberto Rossellini, Mais do Que Uma Vida por tudo isso e muito mais, é um documentário crucial como abordagem, por entender o seu protagonista e pensar em um formato narrativo que fosse condizente com o seu pensamento sobre a vida e a arte, de saber explorar a fundo a personalidade e o pensamento riquíssimo de Rossellini. Esse é um documentário de pesquisa e também de respeito pelo seu personagem, tão múltiplo e irrequieto quanto ele, tão fascinante como ele.  

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

CINEFIALHO - 2024 EM 100 FILMES

           C I N E F I A L H O - 2 0 2 4 E M  1 0 0 F I L M E S   Pela primeira vez faço uma lista tão extensa, com 100 filmes. Mas não são 100 filmes aleatórios, o que os une são as salas de cinema. Creio que 2024 tenha sido, dos últimos anos, o mais transformador, por marcar o início de uma reconexão do público (seja lá o que se entende por isso) com o espaço físico do cinema, com o rito (por mais que o celular e as conversas de sala de estar ainda poluam essa retomada) de assistir um filme na tela grande. Apenas um filme da lista (eu amo exceções) não foi exibido no circuito brasileiro de salas de cinema, o de Clint Eastwood ( Jurado Nº 2 ). Até como uma forma de protesto e respeito, me reservei ao direito de pô-lo aqui. Como um diretor com a importância dele, não teve seu filme exibido na tela grande, indo direto para o streaming? Ainda mais que até os streamings hoje já veem a possibilidade positiva de lançar o filme antes no cinema, inclusiv...

AINDA ESTOU AQUI (2024) Dir. Walter Salles

Texto por Marco Fialho Tem filmes que antes de tudo se estabelecem como vetores simbólicos e mais do que falar de uma época, talvez suas forças advenham de um forte diálogo com o tempo presente. Para mim, é o caso de Ainda Estou Aqui , de Walter Salles, representante do Brasil na corrida do Oscar 2025. Há no Brasil de hoje uma energia estranha, vinda de setores que entoam uma espécie de canto do cisne da época mais terrível do Brasil contemporâneo: a do regime ditatorial civil e militar (1964-85). Esse é o diálogo que Walter estabelece ao trazer para o cinema uma sensível história baseada no livro homônimo de Marcelo Rubens Paiva. Logo na primeira cena Walter Salles mostra ao que veio. A personagem Eunice (Fernanda Torres) está no mar, bem longe da costa, nadando e relaxando, como aparece também em outras cenas do filme. Mas como um prenúncio, sua paz é perturbada pelo som desconfortável de um helicóptero do exército, que rasga o céu do Leblon em um vôo rasante e ameaçador pela praia. ...

MOSTRA CINEBH 2023

CineBH vem aí mostrando novos diretores da América Latina Texto de Marco Fialho É a primeira vez que o CineFialho irá cobrir no modo presencial a Mostra CineBH, evento organizado pela Universo Produção. Também, por coincidência é a primeira vez que a mostra terá inserido um formato competitivo. Nessa matéria falaremos um pouco da programação da mostra, de como a curadoria coordenada pelo experiente Cleber Eduardo, montou a grade final extensa com 93 filmes a serem exibidos em 8 espaços de Belo Horizonte, em apenas 6 dias (26 de setembro a 1º de outubro). O que atraiu o CineFialho a encarar essa cobertura foi o ineditismo da grande maioria dos filmes e a oportunidade mais do rara, única mesmo, de conhecer uma produção independente realizada em países da América Latina como Chile, Colômbia, México, Peru, Paraguai, Cuba e Argentina, sem esquecer lógico do Brasil.  Lemos com atenção toda a programação ofertada e vamos para BH cientes da responsabilidade de que vamos assistir a obras di...