Texto por Marco Fialho
O diretor e ator Antônio Pitanga demorou anos para realizar Malês, que foi o projeto de sua vida. É muito comum, uma produção desse porte, acalentada por anos ser de difícil execução. A obra tem sim seus méritos, afinal é uma superprodução, embora também carregue alguns senões em seu resultado final.
Malês conta com uma equipe técnica muito competente, em especial a parte que coube a fotografia comandada por Pedro Farkas, sem dúvidas, um dos grandes profissionais do nosso cinema, com filmes no currículo como os belíssimos Ele, o Boto (1987), Inocência (1983), A Ostra e o Vento (1997), Desmundo (2002), apenas para citar alguns. Em Malês, a fotografia das sequências noturnas são brilhantes e instauram por si um suspense pelo visual, um show à parte. E as cenas diurnas, muitas foram extraídas diretamente das poesias pictóricas de Jean-Baptiste Debret, outro espetáculo à parte do filme.
Ouvi muitas críticas quanto ao didatismo da proposta de Antônio Pitanga para Malês, mas confesso que não considero que haja esse viés no filme. Há contextualizações que são necessárias no filme, por tratar de um tema pouco falado na história do Brasil. O livro de João José Reis, A Rebelião Escrava no Brasil: A História do Levante dos Malês em 1835, serve como maior referência e o autor é um dos consultores do projeto, o que faz com que a parte histórica e de reconstituição de época seja impecável. Pitanga é baiano e essa aproximação mostra o quanto o tema é orgânico para ele como realizador, e isso está no filme.
Se a imagem é magnífica e a reconstituição histórica e cultural são tão ricas e precisas, o que falta para Malês ser uma obra fantástica? Por que algo ali emperra em algum momento e chega a incomodar? Creio que o filme não consiga fluir, se ressinta de um pouco de ritmo e se perca na gama de personagens que diluem por demais a história. A personagem da Camila Pitanga, por exemplo, poderia ser melhor desenvolvida, para que pudéssemos entender melhor as suas ações de delação do movimento. Como está no filme, fica muito pouco aprofundada, merecia ali um cuidado maior.
Por mais que a temática seja relevante, o roteiro de Manuela Dias não extrai o essencial dessa história tão fundamental de ser recuperada. Em alguns momentos não sabemos se o central do filme é a história de amor, da separação do casal muçulmano no dia do casamento no Reino de Oyo, na África, lá em 1830, ou a revolta dos malês em si. Talvez, a inclusão dessa história de amor desloque por demais o tema principal, que é o do resgate histórico para um grande público da revolta dos escravizados em pleno auge do escravismo imposto pelos senhores escravizadores.
Outro ponto frágil de Malês está nas interpretações. Algumas destoam muito do conjunto, mas precisamos reconhecer que determinados diálogos soam demasiadamente teatrais tanto pelo texto quanto pelas interpretações em si. Há um sub-aproveitamento de Pacífico ou Bilau (Antônio Pitanga), principal líder e o mais lúcido de todo o processo. Há uma cena, logo no início da chegada deles no Brasil, onde uma discussão mostra aspectos divergentes entre os escravizados, com destaque para o personagem Dandará, cuja a interpretação de Wilson Rabelo talvez seja a mais impressionante de todo o elenco, junto com a do próprio Antônio Pitanga, que quando está em cena ilumina o filme.
Mas Malês, apesar dos senões apontados, é um bom filme. Falta ousadia na mise-en-scène? Com certeza, os planos não são tão criativos e a narrativa segue sem grandes desafios, mas o filme dá conta de contar a história, mesmo que não a aprofunde tanto em relação às motivações e a organização do levante, além de se perder em um excesso de personagens. Como ator, Pitanga trabalhou com diretores que mais desafiaram a narrativa clássica, que enfrentavam de frente o terreno da inventividade, friccionando ininterruptamente com as convenções mais conservadoras de se narrar uma história. Em Malês, ele tomou um rumo onde a verve autoral não aparece de maneira tão pungente, pois o acabamento televisivo afeito às telenovelas ou o de uma boa série de streaming prevalece no todo. Francamente, estranhei muito o traço autoral estar ausente no filme.

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