Pular para o conteúdo principal

DELÍRIO (2024) Dir. Alexandra Latishev Salazar


Texto por Marco Fialho

Delírio é o que queria ser, um filme de suspense com toques sutis de horror, daqueles que sugestionam mais do que afirmam e que se alimenta por um mistério que o ronda a todo o instante. Em umas cenas nos é dito algo, mas logo adiante o mesmo fato pode ser desmentido ou posto em suspenso. Pouco se chega no Brasil filmes da Costa Rica, e quando isso acontece, ficamos nos perguntando porque não temos outras oportunidades de conhecer essas cinematografias, que muito dialogam também conosco, com nossa realidade.

O filme parte da chegada de Elisa (Liliana Biamonte Hidalgo), e sua filha Masha (Helena Calderón Fonseca), na casa de sua mãe, D. Dinia (Anabelle Ulloa Garay), que sofre de demência e precisa de cuidados, tendo apenas a ajuda de Azucena (Grettel Méndez Ramírez), a empregada, que ainda olha pela limpeza da casa. Mas esse é um filme onde a casa não deixa de ser protagonista, com suas fotografias de um passado cada vez mais distante. A câmera da diretora Alexandra Latishev Salazar não nos deixa ver muito o ambiente fora da casa, sempre o seu posicionamento é dado na direção da casa, nunca conseguimos captar o que está no entorno dela. Logo no início tem uma cena em que Elisa está em um local com mutas árvores perto da casa, o que indica ser um lugar mais para o rural, mas não temos como identificá-lo com clareza, pois a cena é noturna. Quando alguém da vizinhança chega, mal vemos seus rostos, eles estão quase sempre à distância e em ângulos que não se permite avistar o contexto da casa. 

Um sentimento muito forte em Delírio é o do enclausuramento, essa casa tem algo de sufocante, inclusive com as diversas cenas com as personagens debaixo dos mosquiteiros. O cinema de Alexandra Latishev Salazar me remeteu ao cinema do realizador tailandês Apichatpong Weerasethakul, com uso de fantasmas vivos, dialogando em carne e osso com personagens. Masha, uma menina de 11 anos, fala com o pai, um russo que morreu tragicamente em um acidente aéreo. D. Dinia mal reconhece a filha e vive a perguntar quem é ela. 

O tema da morte circula livremente pela trama, por meio de fotos, aparições e citações como a de D. Dinia de que Elisa, e seu irmão Carlito, a abandonaram para que ela morresse só. O local parece afastado, no interior, sendo que os filhos partiram para estudar numa cidade mais urbana. Elisa é médica e Carlitos há tempos não dá as caras. É curioso o quanto Delírio apresenta majoritariamente personagens femininas. Os homens são circunstanciais, ausentes, ameaçadores (como o jardineiro, irmão de Azucena, que se apresenta a Elisa no começo do filme) ou fantasmas. Elisa é uma mulher movida pela tensão, sempre está nervosa, demonstrando insegurança com a localização da casa, o que a leva a fechar obstinadamente a porta de entrada.

Antes de tudo, Delírio é um filme que aposta no terror pela atmosfera. Não há nenhum acontecimento no presente que seja realmente assustador. Os fantasmas do passado de cada uma das personagens é que instaura o terror. O filme raramente aposta na música como um elemento do terror, como faz a maioria dos filmes do gênero. Delírio prefere o silêncio atordoante, premonitório, que anuncia algo, que na verdade nunca vem. Cada personagem tem seu delírio, imagina coisas e perigos de acordo com as ranhuras ditadas pelas suas vidas pregressas. Cada qual tem uma crise para administrar e o filme versa sobre isso. Para Masha, o pai não morreu, para a avó os filhos ainda são crianças, e para Elisa o medo de ser abusada tal como o pai a fez. 

Delírio é um filme sobre os fantasmas que carregamos, sobre a nossa capacidade de superá-los, ou não. Masha gosta das histórias de Drácula e fantasmas, ela não sabe ainda como lidar com a ausência física irreversível do pai. As cortinas, os véus das camas e os espelhos dizem muito sobre o filme, da névoa que paira ao redor dele. Muitas das cenas são filmadas por trás das portas, como se a direção quisesse nos dizer o quanto essas personagens não se sentem íntimas desse lugar. O melhor de Delírio é anunciar um terror que jamais chega, mas que está impregnado no inconsciente de cada personagem.

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

CINEFIALHO - 2024 EM 100 FILMES

           C I N E F I A L H O - 2 0 2 4 E M  1 0 0 F I L M E S   Pela primeira vez faço uma lista tão extensa, com 100 filmes. Mas não são 100 filmes aleatórios, o que os une são as salas de cinema. Creio que 2024 tenha sido, dos últimos anos, o mais transformador, por marcar o início de uma reconexão do público (seja lá o que se entende por isso) com o espaço físico do cinema, com o rito (por mais que o celular e as conversas de sala de estar ainda poluam essa retomada) de assistir um filme na tela grande. Apenas um filme da lista (eu amo exceções) não foi exibido no circuito brasileiro de salas de cinema, o de Clint Eastwood ( Jurado Nº 2 ). Até como uma forma de protesto e respeito, me reservei ao direito de pô-lo aqui. Como um diretor com a importância dele, não teve seu filme exibido na tela grande, indo direto para o streaming? Ainda mais que até os streamings hoje já veem a possibilidade positiva de lançar o filme antes no cinema, inclusiv...

AINDA ESTOU AQUI (2024) Dir. Walter Salles

Texto por Marco Fialho Tem filmes que antes de tudo se estabelecem como vetores simbólicos e mais do que falar de uma época, talvez suas forças advenham de um forte diálogo com o tempo presente. Para mim, é o caso de Ainda Estou Aqui , de Walter Salles, representante do Brasil na corrida do Oscar 2025. Há no Brasil de hoje uma energia estranha, vinda de setores que entoam uma espécie de canto do cisne da época mais terrível do Brasil contemporâneo: a do regime ditatorial civil e militar (1964-85). Esse é o diálogo que Walter estabelece ao trazer para o cinema uma sensível história baseada no livro homônimo de Marcelo Rubens Paiva. Logo na primeira cena Walter Salles mostra ao que veio. A personagem Eunice (Fernanda Torres) está no mar, bem longe da costa, nadando e relaxando, como aparece também em outras cenas do filme. Mas como um prenúncio, sua paz é perturbada pelo som desconfortável de um helicóptero do exército, que rasga o céu do Leblon em um vôo rasante e ameaçador pela praia. ...

MOSTRA CINEBH 2023

CineBH vem aí mostrando novos diretores da América Latina Texto de Marco Fialho É a primeira vez que o CineFialho irá cobrir no modo presencial a Mostra CineBH, evento organizado pela Universo Produção. Também, por coincidência é a primeira vez que a mostra terá inserido um formato competitivo. Nessa matéria falaremos um pouco da programação da mostra, de como a curadoria coordenada pelo experiente Cleber Eduardo, montou a grade final extensa com 93 filmes a serem exibidos em 8 espaços de Belo Horizonte, em apenas 6 dias (26 de setembro a 1º de outubro). O que atraiu o CineFialho a encarar essa cobertura foi o ineditismo da grande maioria dos filmes e a oportunidade mais do rara, única mesmo, de conhecer uma produção independente realizada em países da América Latina como Chile, Colômbia, México, Peru, Paraguai, Cuba e Argentina, sem esquecer lógico do Brasil.  Lemos com atenção toda a programação ofertada e vamos para BH cientes da responsabilidade de que vamos assistir a obras di...