Texto por Marco Fialho
O diretor Silvio Soldini realiza com As Provadoras de Hitler o seu filme mais sombrio e pungente da carreira. E essa história, por pouco, não ficou para debaixo do sujo tapete nazista, já que foi uma das sobreviventes que deu origem a um livro escrito por Rosella Postorino, que trouxe à tona essa história canhestra e absurda, de jovens mulheres que provavam a comida de Hitler para que ele não fosse envenenado.
Soldini capricha no visual de As Provadoras de Hitler, com uma direção de arte esmerada, que colabora para que os atores, e nós espectadores, possam imergir nesse sombrio mundo do nazismo. Somos convidados então a penetrar na vida desse lugarejo do interior da Alemanha, vizinho ao bunker onde se esconde Hitler. Rosa (Elisa Scholott) é uma mulher berlinense cujo marido foi à guerra e que não tem mais pai e mãe, e por isso, vai morar com os pais de seu marido. Logo que chega lá, é recrutada, junta com mais outras 6 meninas, para ser provadora da comida preparada para Hitler.
Que fique claro, que essas mulheres eram obrigadas a exercerem esse tenebroso ofício, sob pena de serem sumariamente mortas pelas forças nazistas, mesmo sendo elas alemãs. Por isso, As Provadoras de Hitler é um filme sobre a opressão feminina dentro do regime nazista, do quanto elas ficaram vulneráveis nessa posição na sociedade. O que é abordado aqui é o quanto o corpo dessas mulheres não lhes pertencia. São mulheres condenadas de antemão, arbitrariamente por um regime autoritário e violento.
Muito da mise-en-scène de As Provadoras de Hitler é sustentada pelas boas interpretações dessas 7 mulheres subjugadas. As diferenças entre elas, causam vários conflitos, o que desperta muitas desconfianças que atrapalham uma união que acaba por acontecer com o tempo. Sabiamente, a diretora prefere quase sempre uma câmera sóbria, porém presente e atenta às emoções, pronta para registrar as agressões nazistas e o sentimentos de Rosa e as outras jovens provadoras. Assim, Silvio Soldini controla a intensidade de cada cena tendo foco nas personagens que sofrem uma tensão permanente por não poderem arbitrar sobre os seus próprios corpos. O diretor ainda explora pontualmente a música, mas apenas nos instantes mais cruciais e dramáticos, mas que talvez pudesse fazê-lo de maneira menos acentuada, não manipulando tanto a visão do espectador sobre os fatos, que já falam por si devido à grande dose de crueldade intrínseca à própria história narrada.
Contudo, o maior aspecto sonoro de As Provadoras de Hitler não está na música, mas sim nos detalhes em que o som é devidamente construído para que acompanhemos o sofrimento contínuo delas, como as cenas reiteradas dos passos coletivos a repisarem nossas cabeças ou dos sons aterrorizantes dos talheres nos pratos ou o silêncio das esperas soturnas pelas quais somos cúmplices dessas mulheres que cheiram à morte em cada nova cena. É algo angustiante essa espera a que somos submetidos a cada garfada que essas mulheres dão nos pratos que lhes são servidos, sem terem o direito sequer ao vômito.
Na guerra é sabido que a carência de alimentos é uma das ameaças presentes no cotidiano, portanto comer bem é uma tarefa praticamente impossível. Aqui se vive uma franca antinomia. Essas mulheres comem do bom e do melhor durante um período de escassez profunda e real, mas com a sombra perene de uma morte eminente por envenenamento de seus corpos, e o que mais assusta é isso não ser uma opção delas. Nessa situação, convenhamos, até uma comida requintada gastronomicamente desce com um gosto amargo e insosso.
As Provadoras de Hitler trabalha em plena segunda guerra mundial com uma opressão e violência nazista, não contra os judeus, mas contra esses corpos alemães que são submetidos a uma arbitrariedade atroz. Não são corpos ditos inimigos, mas corpos saudáveis de mulheres alemãs. Soldini traz a discussão o quanto um estado opressor não oprime apenas um alvo específico, mas tritura e corrompe também por dentro as pretensões de esperança. São corpos marcados pelo silêncio e a espera torturante, de um opressor que tudo pode sobre os corpos tanto de inimigos quanto de supostos aliados.
Outro ponto abordado por Soldini é a relação desses corpos femininos com o prazer sexual e suas consequências nesse período atípico de suas vidas. A guerra retira os maridos das mulheres e as exige a fidelidade delas, independente do tempo de espera. São corpos vigiados e prontos a serem punidos se cometerem qualquer ato considerado desviante. As esposas, na maioria dos casos, casaram e sequer tiveram tempo de ter muitos momentos de intimidades após o casamento, o que gerava uma estranha situação para esses corpos, fora os engravidamentos indesejados frutos dessas relações às escondidas.
Rosa, por exemplo, acaba se envolvendo com um oficial e essa relação serve para Soldini explorar os meandros das etiquetas nazistas. Ele a confidencia em certo momento, como os militares precisavam manter um protocolo oficial e narra regras públicas de comportamento que serviam de base para solidificar uma imagem de credibilidade, e instaura, em paralelo, um medo generalizado na sociedade. São homens temidos e dispostos a tudo para manter um regime, e mais do que isso, criar uma imagem que transmita força e confiança a todos que se deparam com aqueles corpos devidamente uniformizados.
As Provadoras de Hitler abre uma discussão importante sobre o papel das mulheres durante as guerras, misturando situações objetivas de suas vidas com os aspectos subjetivos de como seus corpos foram atingidos frontalmente pelos desmandos nazistas. O filme aborda casos diferentes, de corpos casados, viúvos e solteiros, como cada um reagiu a essa opressão. Se os homens podiam morrer na linha de frente, as mulheres também sofreram por não poderem exercer a liberdade de seus corpos. Os soldados nazistas se aproveitavam de sua condição de poder para flertar e muitas vezes estuprar ou abusar dos corpos das mulheres, que estavam vulneráveis em vários aspectos, tanto emocional quanto materialmente.
Soldini ainda trabalha a questão da sororidade possível, dentro de uma atmosfera onde as mulheres estavam fragilizadas. Fora tudo isso, tinha a questão financeira que ajudava às famílias prejudicadas pelo contexto de crise que uma guerra propicia. Ao focar no desenvolvimento das personagens, Soldini costura com eficácia o viés emocional de Provadoras de Hitler, mesmo que às vezes exagere nas tintas musicais de algumas cenas, mas sem sombra de dúvidas, esse é um belo registro de resistência humana e feminina ao autoritarismo nazista.

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