Texto por Marco Fialho
Quero começar dizendo como Um Só Pecado me surpreendeu positivamente. Esse era um filme de Truffaut que por algum motivo deixei infelizmente passar. Até cheguei a pensar que já o tinha visto, mas a cada cena vista o encantamento só aumentava e mostrava que jamais o havia visto antes. O filme é uma nítida e escancarada homenagem ao mestre Alfred Hitchcock, embora haja muito do próprio Truffaut em tudo, especialmente no tema do amor e no toque literário que sempre marcaram a sua carreira como diretor.
À época do lançamento de Um Só Pecado, Truffaut falou sobre o tema que sempre o motivou a fazer filmes: "O amor é o tema dos temas. Ocupa tanto espaço na vida, nos apartamentos, nas ruas, nos escritórios, nos jornais, na política, nas guerras, nas fábricas, na vitória, no fracasso, nas festas populares, nos jardins das praças públicas, nas escolas, nas casernas e nos aviões que, se me provassem estatisticamente que noventa por cento dos filmes são sobre o amor, ainda assim eu responderia que isso não basta. (...) Na vida, alguns homens se realizam, outros não. Alguns são mais belos, mais ricos ou inteligentes do que os outros. Os homens são iguais, claro, mas apenas diante de Deus! No amor, não existem pobres. Esse grande motor humano é, portanto, o nosso único denominador comum." (in Gillian, Anne [org.]. O Cinema Segundo François Truffaut. Ed. Nova Fronteira, Rio de Janeiro, 1990, p.155 e 156).
Porém, não se deve pairar dúvidas, Um Só Pecado é sobretudo um filme de amor ao cinema, um estudo de como o cinema pode narrar uma história simples de amor. Se a história é banal, corriqueira, a forma de narra-la é que faz diferença. O mais incrível nesse filme é como Truffaut filma uma história de amor como um filme de suspense e isso confere uma outra faceta da obra.
Desde os créditos iniciais pode-se notar o detalhe hitchcockiano de Um Só Pecado, a atenção ao detalhe, da câmera como condutora do olhar do espectador e nada é mais Hitchcock do que isso. O mestre inglês foi quem mais se dedicou a esmiuçar o papel do olhar do espectador no cinema, cabendo ao diretor a responsabilidade de conduzir e educar o espectador.
Quando Truffaut inicia mostrando mãos se entrelaçando nos créditos, já envia pelo menos dois importantes sinais ao público: o primeiro deles, que vai versar sobre uma relação íntima de um casal, e o segundo, que os detalhes serão determinantes para o ato de experienciar o filme. Fora isso, ainda para ficarmos na cena dos créditos, também há um destaque para uma aliança de casado, em que a mão feminina ao tocar a masculina, roda esse anel. O que não sabemos ainda é que se essas imagens querem mostrar um casamento recente ou um ato de adultério. Esse dado típico do suspense, de deixar sempre uma pergunta é o que mais caracteriza Um Só Pecado, e transfere para o espectador a curiosidade do que virá a seguir.
Na história, Pierre Lachenay (Jean Desailly) é um homem de meia idade, especialista em literatura que numa viagem à Lisboa se envolve amorosamente com Nicole (Françoise Dorléac), uma jovem aeromoça, o que fatalmente abalará o seu casamento com Franca (Nelly Benedetti). Truffaut parte desse triângulo amoroso trivial da vida contemporânea para realizar um estudo seco sobre o ato de se apaixonar e se desapaixonar. Os meandros desse processo do amor e do desamor são registrados em detalhes imagéticos precisos e geniais pelo diretor francês.
Um Só Pecado é um filme talhado pelo olhar de cada personagem e a criação imagética desse olhar é o que faz a diferença entre um filme de amor qualquer e esse dirigido por Truffaut. Por isso, o filme do mestre francês só ganha projeção com o passar dos anos, por se revelar um estudo cuidadoso sobre como o cinema pode acrescer elementos e significados para a compreensão do fenômeno amoroso, em especial o do adultério, tema sempre envolto em contrariedades.
Truffaut narra Um Só Pecado a partir das vivências de Pierre Lachenay, um homem que vive imerso nos autores do século XIX, isto é, de certa maneira deslocado do seu tempo. Se encanta pela juventude de Nicole, uma jovem que vive boa parte da vida em voos internacionais, uma mulher que representa bem o seu tempo, o século XX. Esse primeiro contraste é o que chama atenção logo de cara. Mas Truffaut esmiúça o processo com olhares persistentes de ambos os lados, até culminar numa cena no elevador do hotel em Lisboa, em que Truffaut esgarça o tempo para que possamos usufruir desse momento mágico entre duas pessoas. O que levaria pouquíssimos segundos, é decupado para que dure o dobro do tempo, com closes em chaves em que avistamos os números dos quartos de cada um.
Não é a história em si o que mais nos atrai na narrativa de Truffaut, mas sim como foram pensados os planos para que nós espectadores fossemos seduzidos na mesma proporção dos personagens. O que Truffaut constrói a partir de Um Só Pecado é como o cinema tem o poder de elevar o espectador para o centro e isto só é possível por ele filmar especialmente para o nosso olhar, para que acompanhemos como a novidade, a descoberta orquestrada pelo olhar, pela atenção, faz nascer o amor e como a falta de tudo isso encaminha a relação para o insucesso. Truffaut documenta tudo isso pela lente do cinema e o faz dando protagonismo para o nosso olhar.
O que seria de Um Só Pecado se não existisse antes o gênio de Alfred Hitchcock, com seu olhar invasivo e indiscreto. Esse é um filme tributário especialmente a Janela Indiscreta (1954) e Um Corpo Que Cai (1958). A grande descoberta hitchcockiana foi a de saber alimentar os impulsos voyeurístico do espectador. Não basta apenas contar uma história, é preciso adentrar nos desejos humanos, nas suas dores, expectativas e traumas. O que Truffaut faz é nos expor as fraquezas de Pierre Lachenay, seu impulso juvenil de levar em frente os seus desejos imediatos e de provar o sabor de uma aventura e esquecer as consequências de sair do script da liturgia de um homem casado.
Truffaut não julga Pierre, apenas nos mostra secamente o desenvolvimento dessa relação fadada ao fracasso. O diretor se inspirou em fatos reais de jornais como ponto de partida para Um Só Pecado. Queria trabalhar com esse viés do amor, desde o sublime até o seu final trágico. Mas o espectador ganha bem mais do que apenas conhecer uma história, ganha uma aula de como no cinema é possível se compreender melhor sobre a construção de uma história sob o olhar do desejo.

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