Texto por Marco Fialho
Assistir ao documentário Picasso - Um Rebelde em Paris me trouxe uma gama de reflexões acerca da narratividade inerente a alguns filmes. As opções da direção para realizar esse trabalho são curiosas e merecem um destaque. Há, na entrada do filme, algumas imagens de quadros de Picasso ressaltando sua paixão pelo universo circense e em paralelo entra em cena todo um aparato sofisticado e estilizado de imagem igualmente circense que introduzirá a figura da atriz iraniana Mina Kavani, que logo descobriremos será a narradora do documentário. A atriz fala sobre o poder do universo do circo para a construção do aparato mental contraditório de Picasso e assim começa o filme.
Falar de uma personalidade do porte de Picasso não é fácil mesmo, dado à profusão humana e artística envolvida, mas creio que a cineasta Simona Risi escolhe estratégias duvidosas. A própria Mina Kavani em certo momento diz que conhece a condição de ser imigrante na França, porque como Picasso também veio de outro país para Paris. Mas não consegui conectar o que exatamente a elegia como uma narradora ideal para a empreitada. O filme ambiciona ainda a falar um pouco da trajetória do Museu Picasso na França, assim como intenta também explorar a mente do artista. Esses temas meio que se misturam e não permitem que o documentário se ache em meio a tantos objetivos analíticos. Vários dos conteúdos trazidos à baila são de interesse, embora o filme careça de um foco maior, o que faz com que os conteúdos se pareçam desconectados em determinados momentos.
O mais estranho, portanto, em Picasso - Um Rebelde em Paris é que Simone Risi se utiliza dessa narração para tentar fugir do clássico formato BBC de se fazer um documentário educativo, quando na prática se utiliza das mesmas estratégias narrativas, como a de apelar para especialistas para falarem sobre aspectos incomuns da personalidade artística do pintor espanhol. Por mais que o formato televisivo tente ser superado, ele surge a todo instante por trás da voz quase sempre em off de Mina Kavani e nos depoimentos de especialistas sentados numa cadeira vem a dizer o que devemos ver na complexa obra do gênio de Málaga.
Por mais que a diretora se esforce em ver Picasso sob os olhos afiados e devidamente talhados pela visão da representatividade, e assim é possível ver com mais nitidez as contradições por trás do gênio, do homem que usou implacavelmente as mulheres para o seu insaciável prazer sexual e egocêntrico, a tal figura viril do Minotauro que tanto representou em seus quadros. Sinceramente, não sei se é válido ou produtivo tentar entender um artista do século XX sob o instrumental teórico do século XXI. Traduzir um personagem fora de seu contexto seria de um malabarismo intelectual incontornável e introduz até uma dose de esterilidade à análise. Mas tudo bem, pode dar view ou um falatório tão bem remunerado nas redes sociais. E aqui não cabe uma defesa do artista, pois creio que os juízos de valor acerca dos atos do homem e artista Picasso podem ser feitos tranquilamente por qualquer um de nós, dentro da utensilagem mental de cada época.
A parte sonora de Picasso - Um Rebelde em Paris talvez seja responsável por instaurar um tom artificioso de mistério e de imprevisibilidade ao documentário, como se ela sugerisse aos espectadores a entrada na mente perturbada de um artista genial e polêmico, destemido e capaz dos atos mais insanos em nome de sua arte. A própria narração de Mina Kavani também colabora para uma sensação de que estamos adentrando em um circo de horrores maravilhoso e encantador.
Mais do que uma personalidade incomum e corajosa, Picasso sintetizou a história da arte com sua abrangência e fome de contê-la em sua obra. Passeou pelo clássico, pelas vanguardas do século XIX e XX com uma capacidade de degluti-las e reinventá-las a seu modo. Ver Picasso como uma mera aberração genial e mitológica creio ser de um reducionismo vazio. Picasso fez nas artes visuais o que fez Miles Davis na música, curiosamente, no mesmo período ao sintetizar o passado, o presente e apontar o futuro. Miles Davis também fez parte das big bands (que foram as grandes escolas dos músicos de jazz do século XX) e dos clássicos quartetos de jazz para mergulhar depois no bebop, no fusion, no free jazz, no pop music e elevar o jazz para um campo mais alargado, tanto de público quanto de estilos. E Picasso fez o mesmo pelas artes visuais, não hierarquizando pintura, escultura, cerâmica, cenografia, poesia e juntando várias manifestações artísticas para popularizar ideias contemporâneas sobre arte. Não casualmente, trafegou pelo surrealismo, modernismo, cubismo e tantos estilos e formas de representação do mundo pela arte.
Picasso - Um Rebelde em Paris prefere colher materiais e depoimentos que comprovam sua duvidosa ideia de irracionalizar a personalidade do artista. Picasso, como qualquer outro ser humano, toma em sua vida atitudes irracionais e racionais, inclusive a sua atuação política pode ser vista como uma prova material de sua capacidade racional e coerente de viver à sua própria trajetória como artista. A diretora Simona Risi agrega ainda à sua narrativa uma visão de que a própria Paris pode ser vista como uma cidade da sedução, que possibilitaria o irracional fluir nas veias dos artistas. Mas o que poderia ser mais forte é a realidade de uma Paris do submundo em Montmartre, com uma pobreza ditando o estilo de vida de quem precisa extrair do difícil cotidiano o seu ganho de vida.
Simona Risi usa imagens do documentário de Henri-Georges Clouzot como um dos aportes para se chegar nesse tal Picasso irracional, quase bestial, só que não a faz com sucesso, pois o filme do mestre Clouzot fica solto, como se ela intuísse algo a ser trabalhado a seu favor, mas não soubesse bem como encaixá-lo na proposta. Talvez, Simona quisesse usar o filme para flagrar os traços voluptuosos do artista, uma fúria para colaborar com a sua tese. Assim, juntando a paixão fúnebre do pintor pelas touradas, pelo Minotauro, pela boemia, pelo sexo e outros tantos aspectos presentes no trabalho dele. Mais uma vez encaro esse tour de force de Simona como um exagero, já que Picasso possuía uma propensão pela cultura vindo das tradições mais populares, inclusive sua adesão às ideias comunistas justificavam essa paixão.
Picasso - Um Rebelde em Paris mesmo que o filme tenha seus êxitos na montagem, que foge com eficácia e espertamente do cronológico e das fases do artista, se fragiliza especialmente pela narração de Mina Kavani, que aposta em um viés interpretativo que deixa uma dúvida de onde viria. Seria a própria atriz misturando os textos escritos pelo roteiro com suas experiências ou tudo ali seria a voz da direção? De qualquer forma, esse direcionamento do olhar do espectador é um ponto a menos para o filme, por não reservar à espectoralidade uma margem para pensar a obra de Picasso.
Por isso, Picasso - Um Rebelde em Paris é mais conservador do que se pretende, é mais careta do que imagina, ao tratar o espectador sob um manto da ingenuidade. Claro que ver um filme sobre Picasso é sempre revigorante e desafiador, afinal, os gênios não são para ser entendidos, apenas para desafiar as fáceis compreensões sobre o mundo. Mas esse é um filme interessante para se pensar não só o papel da arte, como também o do próprio documentário. Normalmente, os filmes-tese são os que abordam temas políticos, Michael Moore que o diga. Mas diante à arte, proferir um discurso fechado sobre um artista ou movimento acaba por arremessá-la para algo que, essencialmente, contradiz a sua própria natureza interrogativa.
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