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PARIS, TEXAS (1984) Dir. Win Wenders


Texto por Marco Fialho

Nada define melhor Paris, Texas, grande clássico do cinema contemporâneo, dirigido por Win Wenders, do que a trilha musical melancólica, milimetricamente pensada e executada por Ry Cooder. Quando ouvimos aquele slide de sua guitarra somos sugados de imediato para algo que ainda não sabemos o que é, mas que nos chega com uma força impressionante. 

Se formos pensar na história que Wenders nos proporciona, veremos que não há nada de esplendoroso, ela é simples: um homem que é achado perdido no deserto, depois de 4 anos desaparecido, capturado pelo irmão no sul dos Estados Unidos, perto da fronteira com o México, e que depois tenta se entender para reaver a sua vida, e quem sabe, reparar alguns erros do passado, em relação à esposa e filho. Em menos de três linhas, podemos narrar a história, ou odisseia, de Travis (Harry Dean Stanton, numa interpretação das mais sensíveis do cinema), sem maiores dificuldades. 

O que faz, então, Paris, Texas ser o filme majestoso que é? Para ser sincero, creio que o que faz a potência do filme é a forma com que os elementos cinematográficos são compostos por Win Wenders, a maneira como concebe o artifício do cinema para dar corpo e alma para que o resultado seja tocante e possa impressionar. A partir dessa constatação, é possível olhar para Paris, Texas com um olhar que se fixe na análise de sua construção fílmica, pois o filme é um belo exemplo da força que o cinema pode assumir para uma melhor compreensão do mundo contemporâneo, numa junção perfeita entre o poder da imagem e do som como expressividade de um tempo. 

Esse é um filme que disserta sobre o poder do cinema para a humanidade e nos fazer pensar sobre as fraturas emocionais da contemporaneidade. Win Wenders divide o filme em três partes bem delimitadas e específicas: a primeira parte, da necessidade de se entender quem é esse homem perdido em um deserto; a segunda parte, da sua conexão com o irmão (Dean Stockwell), a cunhada (Aurore Clément), e o mais importante, com o filho Hunter Henderson (Hunter Carson), de sete para oito anos de idade; a terceira parte, a da busca de alguma forma de redenção ou acerto de contas com o passado, em especial, com a esposa Jane (Nastassja Kinski). 

Para contar esses episódios, Wenders conta com uma proposta cinematográfica híbrida, se calcando em estruturas clássicas do faroeste, subgênero consagrado na cultura cinematográfica hollywoodiana, somando ainda a tradição dos cultuados road movies, além de liquidificar tudo isso ao drama intimista, marca indelével do cinema independente mundial nos anos 1970 em diante. Os anos 1980 foram marcados por um cinema de referências, regado à citação e na buscar de inserir elementos da história do cinema como uma releitura e atualização contemporânea dos gêneros. Paris, Texas é um desses filmes e um dos mais bem-sucedidos dessa perspectiva histórica que tanto marcou essa década.

Sem entender Travis ou se pensar sobre ele, não conseguimos avançar muito numa análise mais acurada de Paris, Texas. Um homem que surge no filme não só perdido como desmemoriado, e esse é um dado importante. Estamos diante de um contexto social típico do pós-guerra, um ambiente de franco desenvolvimento econômico, onde os indivíduos buscam se inserir nessa realidade de prosperidade e riqueza. Win Wenders é muito feliz em flagrar pequenos detalhes desse mundo, como as grandes marcas que envolvem com grandiloquência a vida cotidiana das pessoas, as condicionando à apêndices dessas estruturas e conglomerados econômicos. Os anos 1980 são os anos da redefinição da publicidade em outdoor, dos grandes prédios e logotipos gigantes. Mas como fica e qual é o papel de cada um de nós nessas megas cidades que crescem em torno de todo esse esplendor capitalista? Wenders aposta na tristeza de Travis para pontuar o quanto desolador é viver nesse mundo onde somos convidados a ser coadjuvantes do consumo. 

A opção de Wenders e Sam Sheppard (um dos roteirista do filme junto com L. M. Kit Carson) é brilhante de pensar o espaço inicial do filme como algo presente na memória estadunidense, o das montanhas que evocam com muita força imagética os clássicos filmes de John Ford, com seus montes amarelados estonteantes, com uma natureza indomável, bem diferente das estruturas arquitetônicas das grandes cidades que já existiam nos anos 1980, que podem ser vistas como resultado da expansão capitalista que a marcha para o Oeste significou, como um exemplar, um marco fundador de uma nova América. Não casualmente, Travis lembra um personagem dos filmes clássicos de cowboy, com calça jeans, bota e um boné dos anos 1980, talvez o chapéu de cowboy do nosso tempo, mas que não esquece depois de incorporar o chapéu do cowboy quando volta para Los Angeles. Evidente, que essa citação às vestimentas não poderia ser casual, mas aqui o contexto é outro, não existe mais nos desertos os indígenas prestes a atacar o homem branco invasor, mas sim um ambicioso homem (obviamente um branco que já tem dominado o território) em busca de recompensa por ter achado um Travis perdido e desmemoriado. Travis no deserto faz um tipo de um cowboy anacrônico, um herói triste, improvável e sem destino. O faroeste já era, o expansionismo agora é de outra natureza.  

As cenas iniciais marcam justamente a fratura histórica, de um local explorado e abandonado pelo homem, mas onde as marcas de cerveja e refrigerantes já estão lá para reafirmar o presente capitalista e dominador, assim como os neons anunciam a modernização dos motéis de beira de estrada. Mas há como esquecer o choque, e justamente o fantástico de Paris, Texas é como a música de Ry Cooder invade o presente com suas notas a lembrar o passado, tal como um fantasma assombra em um castelo. A sensação do que algo está deslocado é flagrante e ela não vem só do fato daquele homem estar desnorteado, pois algo no lugar também não condiz com o mundo tal como o vemos nos anos 1980. Aquele lugar está deslocado, ele expressa a faísca de um passado não tão remoto, daí a referência do faroeste ser tão necessária. É típico desse capitalismo destruir e deixar as ruínas para trás, afinal, é preciso se olhar para o futuro, aniquilando passado e presente em nome de algo que está para vir em nome do dinheiro. 

A maior marca dessa exuberância inerente à sociedade contemporânea, que Paris, Texas tão bem vislumbra, está na afirmação das aparências. Por isso, Wenders não deixa que cores escapem, elas são fundamentais para a edificação desse mundo artificial, em que a imponência do visual precisa suplantar todo o resto. Nesse contexto, a fotografia de Robby Müller sobressai e nela podemos fazer uma leitura precisa desse mundo. Um dos elementos que sustenta a aparência ilusória do sistema é o artificialismo das cores, fator imprescindível para o encantamento capitalista. Wenders assume, portanto, o contraste entre esse personagem fraturado que é Travis com o embelezamento das imagens. Esse é um ponto crucial de Paris, Texas, o desvendar das contradições psicológicas, por isso a celebração dos personagens é tão intensa, afinal, esse é um filme de personagens. O político aqui não está no discurso, mas em como as individualidades estão massacradas sob o véu das aparências, o que importa é o apelo psicológico, mesmo que o filme não traga em si um psicologismo explícito.

O que melhor pode sintetizar Paris, Texas do que Jane, a personagem de Nastassja Kinski, aqui, no auge da carreira em termo de beleza e talento? Se o filme era totalmente masculino em sua maior parte, no seu terço final dá uma guinada, ainda mais que todas as lentes e olhares se voltam para algo irresistível que assume o comando, e podemos nomear isso à força da presença de Kinski. Robby Müller a fotografa lindamente, como se fosse um mais produto capitalista à venda, e o seu papel não deixa de ser expressivo quanto a isso. Jane incorpora o papel maior da sociedade capitalista, o da venda dos corpos e aproxima a solidão humana frente ao poder do dinheiro. Ela faz um tipo de prostituição, vende o que o sistema mais enobrece que é a imagem, a aparência. Numa sala de vidros, ela se expõe a qualquer um que pague. Ela faz striptease para marmanjos, mas também os escuta para saciar a carência emocional típica da contemporaneidade. Jane é um objeto, de prazer e consolo emocional, é um subproduto de um país em frangalhos pela ganância sem limites.      

Paris, Texas é um filme de deslocamentos, onde Travis vagueia pelo Texas, Los Angeles e Houston em busca de si mesmo. A maior resistência desse personagem é o retorno que faz ao seu passado, como se lá estivesse guardado alguma semente da esperança no porvir. O melhor de tudo é que Wenders não tem pressa para desenvolver essa história. A lentidão contrasta com a aceleração do mundo, que quer tudo para ontem e engole a todos sem cerimônia. O final parcialmente feliz e triste revela a ambiguidade dessa narrativa em que a autodescoberta também tem seu preço, onde nem todos os cacos do passado são passíveis de serem remontados ou colados. 

O monólogo entre Travis e Jane soa como uma sessão terapêutica em que os rostos não se encontram, apenas as vozes em longas e pesadas declarações. Antes, os vídeos de um passado feliz que o irmão exibe, acentua premonitoriamente o tom trágico no qual Paris, Texas flerta o tempo todo, algo que não é mais possível resgatar em sua totalidade. O filme se sintetiza muito por essas contradições e antagonismos. O mundo masculino e tóxico do Travis do passado tem um peso danado em relação ao fracasso do casamento dele com Jane. Shows de ciúmes e discursos nervosos botaram tudo a perder. Simplesmente, um cowboy sendo um cowboy, hoje sabemos qual o preço a pagar por essa brutalidade nas relações humanas e amorosas.   

Como um personagem de faroeste, Travis acaba como começou, em uma interminável solidão, preço que os heróis contemporâneos precisam pagar. Quanto mais o filme se inspira em corações solitários, mais as cores vivas e artificiais abundam em Paris, Texas. Definitivamente, esse é um filme para ser visto nos mínimos detalhes, mas também para ser ouvido em sua melancolia e distante esperança de que o mundo ainda pode ter alguma serventia. Por isso, muitos planos anunciam o horizonte, seja numa estrada de ferro a perder de vistas, seja numa paisagem da cidade, que mais parece uma maquete vista de longe, onde homens e mulheres visualmente desaparecem. Se o próprio humano se apequenou pelo imponente da paisagem, o convívio torna-se mais cruel e igualmente distante. Portanto, cada abraço filmado é de um valor inestimável, caso de Hunter quando vê a mãe e a aperta em volta do pescoço, sem esquecer depois de fazer o mesmo com as pernas na sua cintura, provocando nela um largo e emocionado sorriso. Naquele instante, mesmo que seja somente naquele instante, fica no ar a impressão de que a vida, de alguma forma, presta.  

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