Texto por Marco Fialho
Um dos temas mais marcantes em Truffaut é o do amor. O Quarto Verde (1978) é um filme da fase mais madura do diretor (e o último trabalho como ator) em que ele trata da ideia de amor sob uma perspectiva inusitada, a do culto da pessoa amada depois de morta. Óbvio que esta fábula de Truffaut tem uma vertente sinistra, mas o mestre não esquece do lirismo e faz de O Quarto Verde uma ode ao absoluto. Há uma não aceitação filosófica de que tudo na vida é provisório e substituível e em contrapartida Truffaut oferece a exacerbação de uma ideia perenal de amor. E o encontro de Davenne com Cecília (uma Nathalie Baye bela e talentosa) é exemplar e o melhor fio condutor de toda a trama, o que nos faz querer ficar ali para saber até onde vai toda aquela loucura, mesmo que seja o amor a maior motivação de todas.
Vale salientar, que a ideia de um personagem de Truffaut construir um altar pode ser vista lá em seu filme de estreia, Os Incompreendidos (1959), onde o jovem revoltado Jean-Pierre Léaud levanta um altar para homenagear o escritor Honoré Balzac. Mas, se na sua estreia o altar fazia parte de uma subtrama, um detalhe em meio a algo maior, em O Quarto Verde ele surge como um elemento crucial para a trama e o seu simbolismo tem um caráter vital para o personagem Davenne (François Truffaut). Nesse altar, podemos ver não só o grande amor de Davenne, mas também homenagens de Truffaut a algumas figuras do mundo artístico caras a ele, como Henry James, Jean Cocteau, Oscar Wilde e Marcel Proust.
Apesar do amor está no centro da narrativa de O Quarto Verde, a morte como realidade é um elemento crucial. O filme trabalha bastante com essa ideia da morte como uma realidade cruel e o amor como algo infindável e espiritual. Seria a afirmação de uma vitória possível e idealista do eterno sobre o que é transitório, um combate permanente ao esquecimento. Vale salientar que Truffaut retira o conto de Henry James do século XIX e o adapta para 1928, um período marcado pelos corpos mortos empilhados pela Primeira Guerra Mundial (em que Davenne é um traumático sobrevivente), conflito em que o emprego da metralhadora como arma de guerra banalizou a própria ideia de morte.
É preciso ainda lembrar, que à época da produção de O Quarto Verde Truffaut perdeu vários amigos para a morte, algo que o impactou severamente e que o motivou a realizar esse filme. O diretor chegou a afirmar que metade do elenco de Um Só Pecado (1964) já havia morrido. E o que dizer do próprio François Truffaut que viria a morrer 6 anos depois de O Quarto Verde, apenas aos 52 anos de idade.
Entretanto, o mais fantástico em O Quarto Verde está em como Truffaut edifica cinematograficamente suas premissas filosóficas sobre o amor e a morte. Pode não ser um dos filmes mais palatáveis do mestre, mas com certeza é um dos mais impactantes e importantes. Essa é uma obra em que a eficácia do fazer tem um peso incomensurável. A orquestração da fotografia, da música, da cenografia, da câmera, das interpretações funcionam como uma sinfonia executada com bastante precisão. Tudo está encaixado para que a ideia central deslanche, para que o resultado final seja magnífico. O Quarto Verde engendra imagens deslumbrantes, umas das melhores que o cinema já produziu e isso acontece especialmente, pela feliz parceria de Truffaut com o fotógrafo Néstor Almendros, que dá uma aula de como criar cenas expressivas com luz de vela para ambientes cujo significados aqueciam a alma do personagem. São imagens valiosas que só mestres têm a capacidade de pensar e executar.
Em seu livro póstumo O Cinema Segundo François Truffaut, com depoimentos cuidadosamente organizado por Anne Gillain, o mestre francês discorre sobre o aspecto formal de O Quarto Verde e que vale à pena lermos com a devida atenção:
"Estamos na fábula, no 'Era Uma Vez...'. Esse é o tipo de filme em que a forma é muito importante. Tudo nele deve ser bem concertado e ajustado. Na verdade, tudo é sincronizado sobre a música de Jaubert, o Concert Flamand, que foi gravado antes da filmagem. Os movimentos de câmera e dos atores foram estabelecidos em função da música (...) Havia três elementos a serem harmonizados: Henri James (escritor do conto O Altar da Morte), o trabalho de Almendros (fotógrafo do filme) e Jaubert."
Essa fala de Truffaut vai no cerne da obra, atinge pontos importantes e determinantes para se pensar ou se lançar pensamentos sobre O Quarto Verde. Primeiro, o filme ter como ponto de partida a ideia da fábula. E isso pode ser sentido desde o início, porque a o ambiente da fábula é aquele que nos permite esquecer do nosso mundo e mergulhar em um universo em que a fantasia se deixa apossar de nós. Segundo, porque é a música e a fotografia que permitem que sensorialmente possamos sem cerimônia adentrar nesse outro mundo pretendido pelo diretor. Creio que isso seja essencialmente cinema, essa capacidade de aceitarmos um discurso pelos elementos postos por uma milimétrica mise en scène. E Truffaut sabe, como poucos, como realiza-la com absoluta precisão.
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