Texto por Marco Fialho
O Homem Que Amava as Mulheres aborda a vida de Bertrand Morane (Charles Denner), um homem obcecado pela beleza das mulheres. Esse não é um filme de François Truffaut em que há um ponto de vista feminino, embora a narração seja de uma mulher, pois o diretor buscou apenas esmiuçar os pensamentos do personagem, suas relações e a publicação de suas memórias sexuais com as mulheres.
O que mais me chamou a atenção em O Homem Que Amava as Mulheres é a narrativa que Truffaut privilegia para o seu filme, visivelmente um flerte com a literatura, arte que Truffaut se afinava e adorava. Curiosamente, o filme inicia do fim, com o enterro de Morane, algo que contraria muito a filmografia de Truffaut, mas que aqui cai bem e não atrapalha o desenvolvimento do roteiro. A sequência de abertura é lindíssima, com a câmera colocada em contra-plogée, para se filmar a partir do ângulo que mais agradava ao morto, o das pernas das mulheres.
Truffaut arrisca uns flashbacks, algo também pouco usual em sua filmografia, em especial para Morane lembrar a mãe, uma mulher de muitos homens e altamente sedutora. Suas lembranças dela são envoltas pelo erotismo. Truffaut prefere abordar o processo de sedução de Morane em relação às mulheres como algo não vulgar, pois o personagem nunca simplesmente canta uma mulher, existe sempre uma forma indireta para se chegar até elas, o que confere a ele um certo charme. Tem até uma cena com um homem abusado em um bar, que assedia grosseiramente uma garçonete. Truffaut cria essa cena justamente para diferenciar Morane desse tipo de abusador barato, para colocá-lo em outra prateleira da sedução.
Mas é evidente que o caso de Morane tenha um quê de patologia, essa fixação nas pernas, na figura do feminino predispõe alguma enfermidade. Tanto que podemos analisar a personalidade de Morane pelo seus pesadelos, em especial quando ele se transforma em um manequim de uma loja de roupa íntima e passa a ser assediado pelas mulheres. Essa inversão instiga pensarmos sobre esse papel dele ser aficionado na figura feminina.
Numa entrevista, Truffaut é questionado acerca do erotismo e da pouca cena de sexo e nudez em seu filme. E, curiosamente, ele se utiliza de uma comparação com a literatura para falar dela:
"Gosto muito de Henry Miller, mas a nudez que ele evoca em literatura não teria o mesmo valor se transposta para o cinema. Sou por um erotismo vestido." (in Gillain, Anne. O Cinema Segundo François Truffaut. Ed. Nova Fronteira, Rio de Janeiro, RJ, 1990, p. 354)
Nota-se que Truffaut se refere a questão de mostrar, o quanto que na literatura o explícito, ainda assim, precisa ser imaginado, enquanto no cinema ocorre algo bem diferente, pois o que é mostrado perde o poder da imaginação. O Homem Que Amava as Mulheres não deixa de ser erótico por não mostrar, mas por provocar o espectador a ver algo que ficou no plano do implícito.
O fato de muitas das ações estarem no implícito, não significa que saibamos pouco ou que fiquemos desinteressados do que vemos. Um dos charmes que Truffaut usa na narrativa de O Homem Que Amava as Mulheres é o da narração em off. Se o filme inicia com uma mulher fazendo essa função, logo o próprio Morane assume o discurso em tom de confidencialidade com o espectador, o que faz com que nos tornemos cúmplices de suas aventuras eróticas. Esse é um artifício interessante de Truffaut, e olha que sabemos como ele gostava do uso de artifícios no cinema.
A fotografia de Nestor Almendros aposta na intensidade das cores, se ampara no calor dos depoimentos e nas ações ousadas de Morane quando o assunto é conquistar uma mulher. E como é interessante ver a pluralidade de mulheres brotando na tela, elas são de idade, personalidades e temperamentos diversos. Isso deixa o nosso protagonista atordoado, porque o que funciona para uma, não funcionará para outras, e isso é encantador.
O mais estranho nesse filme de Truffaut é o quanto ele consegue espetacularizar uma história cujo mote é algo banal, um homem obcecado por mulheres. Nesse ponto, mais do que um filme sobre a visão de um homem sobre mulheres, o que vemos aqui é um filme mais uma vez lírico sobre a relação entre cinema e sedução. Truffaut transforma a banalidade em algo encantador, um homem doente capaz de ser acometido pela poesia, afinal, é mais interessante ouvir o que ele tem a dizer sobre as mulheres do que propriamente vê-las seduzidas por ele. É a magia de Truffaut funcionando mais uma vez nas revelações de suas contradições e mistérios.
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