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JULES E JIM (1963) Dir. François Truffaut


Texto por Marco Fialho

Jules e Jim é o terceiro longa de François Truffaut e uma obra fundamental na sua filmografia, além de ser um marco para a Nouvelle Vague francesa. O filme reafirmou o sucesso do diretor no cenário mundial, que já tinha realizado o grande Os Incompreendidos, que já havia lançado em 1959, o seu nome como um importante artista do cinema contemporâneo. 

É a segunda vez que Truffaut acende a discussão sobre o amor em sua obra (tinha iniciado um ano antes com Antoine e Colete - 1962), tema que jamais abandonará até o final da carreira, em 1983. Jules e Jim aborda um triângulo amoroso entre os amigos Jules (Henri Serre), Jim (Oscar Werner) e a imponente Catherine (Jeanne Moreau). Apesar do título sugerir o nome de dois homens, é a personagem feminina a grande protagonista da história. Embora seja sempre afirmativa em suas aparições, Catherine mantem um quê de mistério durante toda a história. Truffaut adaptou Jules e Jim de um romance que até então era obscuro, escrito por Jean-Pierre Roché, um homem com mais de 70 anos que resolveu romancear alguns fatos de sua vida. Truffaut alavancou o livro de uma maneira jamais antes imaginada pelo seu autor, o transformando em um grande sucesso até hoje.     

Vejo Jules e Jim como um diálogo criativo e poderoso com os filmes franceses do realismo poético dos anos 1930, com sua verve libertária, com personagens soltos pelo mundo em uma busca incessante pela arte de viver. A Nouvelle Vague, de certa maneira, é uma herdeira dessa tradição que forjou o cinema francês com seu viés trágico e terno, porém, evidentemente, como se não pudesse se esquecer da inteligência e graça cômica de Chaplin. Comédia e tragédia caminhando de mãos dadas, assim é Jules e Jim, um Truffaut que quer dialogar com o bom cinema de antes para abrir caminhos no futuro. Quem sabe, esse é o filme com menos influência da narrativa clássica do diretor, uma linha que poderia ser mais explorada por Truffaut na carreira, mas que não resistiu por muito tempo à fúria hitchcockiana que viria a inebriar as suas criações futuras. 

Mas Truffaut introduz uma leveza para essa tradição trágica, com a câmera quase malabarista de Raoul Coutard (que se tornou mais habituê nos filmes de Godard), que expressa tão bem o sentido de liberdade que inspirou a Nouvelle Vague. Por isso, a personagem de Catherine é fundamental para afirmar o papel do feminino a se impor perante a um masculino que não sabe como lidar com essa impulsividade feminina. Ela comanda literalmente as cenas, desde à fase da juventude até a mais madura. 

Tem uma passagem que diz muito sobre esse triângulo estabelecido desde o princípio do filme. Jules, Jim e Catherine (vestida de homem e com um bigode pintado sobre os lábios) estão subindo numa ponte e um dos dois pergunta: "Está chovendo ou é um sonho?", no que Catherine responde rapidamente: "As duas coisas". Logo a seguir vem a cena da disputa de uma corrida, onde Jim ao contar até três, ela larga antes do tempo, numa franca trapaça e ganha dos dois. Jules e Jim em uma cena é isso. Tudo o que vem a seguir, só ratificará o poder dessa imagem. Truffaut ainda enfatiza que Catherine tem um pai nobre francês que casou com uma inglesa sem estirpe. Como diz Jules, isso capacita Catherine a ensinar Shakespeare, um toque sutil de humor sublinha uma dose de sagacidade nesse comentário. 

Entretanto, um filme jamais é uma coisa só, afinal, muita água passa debaixo de uma ponte e aqui essa verdade não seria diferente. Jules e Jim é ainda uma resposta enfática que Truffaut cria para a influência das guerras mundiais para a Europa no Século XX, pois é justamente a Primeira Guerra Mundial que faz com que Jim defenda o lado francês e Jules o lado alemão. Nesse meio do caminho, o triângulo se desfaz e Catherine se casa com Jules e eles tem uma filha. 

Em síntese, Catherine é uma mulher da ação, age como os homens agiam e os torna submissos à suas ações. Ela prenuncia novos tempos. E mais, não é o casamento que a define, nem tão pouco define a sua fidelidade a Jules. Catherine não representa o amor, e sim a liberdade, como se sem essa última não fosse possível se chegar ao primeiro. O amor deve está contido na liberdade, senão ele fica reduzido ao vazio. Essa é Catherine com sua moral inegociável. É na natureza onde ela se realiza, o estado selvagem a atrai, lá ela se sente um animal em plena vida. Ela ama Jules e Jim de maneira diferente, mas ambos com densidades próprias. Em uma entrevista em 1975, doze anos após o lançamento do filme, Truffaut defendeu assim o seu triângulo amoroso: "Durante toda a sua vida, a heroína do filme, Catherine, vai amar dois homens e estes continuarão amigos, sem deixar de amá-la. Um desses homens é alemão, Jules; o outro, Jim, é francês. No chalé em que vivem juntos, há também Sabine, a filha única de Jules e Catherine. Isso banha o filme como um todo com uma atmosfera familiar e tranquila. Era justamente isso que me agradava: fazer um filme subversivo com toda a doçura, sem agredir ao público, mas ao contrário, envolvendo-o com ternura, forçando-o a aceitar na tela certas situações que teria condenado na vida..." (in Gillain, Anne. O Cinema Segundo François Truffaut. Ed. Nova Fronteira, Rio de Janeiro, RJ, 1990, p. 143).  

Quando Jules a pede em casamento, ela retruca que ele não conheceu muitas mulheres, enquanto ela conheceu muitos homens e que essa era uma equação que resultaria numa relação honesta. Logo depois, eles vão ao teatro, e uma discussão sobre a moral no casamento se estabelece e Jules cita o poeta Baudelaire: "A mulher é natural, portanto, abominável", no que Catherine dá um risinho debochado, de que não há diferença, se o homem pratica a infidelidade, a mulher também pode fazer o mesmo. E Catherine fará, óbvio, ela engolirá o machismo de ambos, mas não com teorias, mas com ações, como pular vestida em um rio à noite. O furacão Catherine sempre está no comando e isso em Jules e Jim é eterno e perene.       

Mesmo sem ter uma pretensão de inventariar nada, Jules e Jim serve como um testemunho desse momento em que a guerra ameaça extinguir o sentido de humanidade pelo ódio. Mas esses são, definitivamente, personagens do amor e Truffaut sabe trata-los como expressões de relações libertadoras, como símbolos de um mundo que precisa nascer deles. Não importa o que vem antes nem durante, mas a vida que não aceita amarras e visões pré-concebidas a priori. 

E como a câmera de Coutard representa exemplarmente essa ideia de liberdade, ela está ali sempre para reafirmar as ousadias de Catherine. A câmera deve ser ditada pela natureza de Catherine e o filme faz jus a isso. Ela é movimento porque Catherine também o é, ela é capaz de fazer girar o mundo, de o levar para outro lugar, de lançar ao vento a sua moral atípica. Sua força é a desagregação da ordem vigente, do moralismo e caretices que a todo o instante o sistema quer fazer cada um de nós abraçar. Por isso, o final é tão expressivo, e ele sai da cabeça da personagem. Não é um final do diretor, mas um final imposto pela personagem, coerente a tudo que ela fez durante a sua trajetória no filme. Jules e Jim é uma obra que nos desconcerta com insistência, que nos instiga incessantemente a perguntar porque devemos viver conforme um padrão estabelecido pelo passado, ou melhor, pelos que já estão mortos.

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