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FAÇA ELA VOLTAR (2025) Dir. Danny e Michael Philippou


Texto por Marco Fialho

Usando de sinceridade: você confiaria sua vida a uma pessoa que empalhou seu cão de estimação? No mínimo, seria para ficar com o pé atrás. Os irmãos Andy (Billy Barratt) e Piper (Soro Wang) acham tudo normal e até comentam que acham Laura (Sally Hawkins) uma ótima pessoa. Pois é, sabe-se que sinais de psicopatia nunca são levados a sério em filmes de terror. E o que dizer então de Oli, ou Oliver (Jonah Wren Phillips), com a sua postura de quem tomou um vidro inteiro de ansiolítico? Antes de qualquer coisa, Faça Ela Voltar é um intenso filme de terror psicológico, mesmo que o gore se manifeste com vigor em alguns momentos precisos e que merece uma análise mais atenta e cuidadosa.

Os diretores Danny e Michael Philippou (Fale Comigo) construíram o universo ficcional de Faça Ela Voltar de uma maneira crua, depois que no processo de pré-produção viram um amigo passar por uma situação de perda de um ente da família. Faça Ela Voltar tem momentos duros, pesados, difíceis de serem vistos pelo espectador, mas será que essas cenas fortes são suficientes para fazê-la uma obra referencial e de maior relevância? A trama gira em torno de sentimentos de perda e de mergulho em estados de possessão. O filme transita em dois episódios essenciais de perda: o de Laura, que perde a filha afogada numa piscina (inclusive tem cenas terríveis dentro dela); e o de Piper e Andy que perderam inesperadamente o pai dentro do banheiro de casa (outro lugar com cenas de grande impacto no filme). 

Se inicialmente, tanto Laura quanto a sua casa sugira algo de estranho, somente no decorrer da trama, os fatos vão tomando uma forma sinistra e angustiante. O melhor de Faça Ela Voltar é a orquestração do suspense, a construção do que virá, sempre será mais terrível do que foi na cena anterior. Os vídeos secretos que Laura assiste são assustadores, feios, mal filmados e mostram rituais de canibalismo que fazem pessoas mortas se incorporarem a outros corpos. Oliver é enfeitiçado por Laura, que controla sua fome insaciável por qualquer objeto ou pessoa a sua frente. 

Nenhuma país ou cultura no planeta Terra possui tanta obsessão pelo doentio quanto os Estados Unidos e isso não é só um fenômeno do cinema, mas também da sociedade. Quase todos os filmes que vemos são tomados por uma ira e uma compulsão por matar (e basta lembrar do quanto o mesmo acontece na vida real, onde volta e meia vemos psicopatas entrando e atirando a esmo em escolas e outros lugares públicos). A cultura do medo já está entranhado nesse país e os filmes ecoam uma escancarada decadência moral, mesmo que vários filmes ainda insistam em conter uma grande dose de moralismo. 

Como Faça Ela Voltar se caracteriza muito pelo seu viés psicológico, é necessário ficar observando durante a projeção as nuances e reações dos personagens a cada acontecimento na camada diegética do filme. Um tem trauma de banheiro; a outra quer a filha de volta a todo custo; uma outra quer uma mãe. A câmera dos diretores quase sempre está atordoada e inquieta, e não se contenta em se fixar em nada. O extracampo é bastante acionado, especialmente em cenas paralelas que acontecem dentro e fora da casa. 

Se há algo que me incomodou em Faça Ela Voltar é a crença absoluta dos diretores na trama que narram. Nada no terreno narrativa fica em suspenso, tudo é muito crível para eles, tudo é verdadeiro por demais, o que agrava o lado doentio, que é absorvido sem uma instância minimamente crítica. A relação de Laura com o corpo morto da filha é de assombrar e sequer há uma ameaça de se explicar como ela conseguiu preservar em casa esse corpo fora do cemitério. Creio que o principal que o filme traz para nós, é a dificuldade de termos que lidar com as perdas irreparáveis, mas a pergunta que deixo é: em que ponto Faça Ela Voltar contribui para uma conversa racional ou mesmo interessante sobre o tema que levanta, seja a da perda ou da possessão? O que vejo é um filme onde os fatos suprimem uma possibilidade de análise, pois tudo vem pronto e fechado tal como um cadáver frio que jamais voltará à vida. 

Já me pronunciei em outros textos sobre o pesado marketing que a distribuidora A24 faz para lançar seus filmes, conseguindo agregar muito hype em torno deles. Mas é evidente que esse novo trabalho dos Philippou tem mais consistência psicológica do que Fale Comigo, o filme anterior da dupla, mas nota-se uma obsessão deles pela questão da perda e da vida após a morte, e mais, uma clara aceitação e validação implícita acerca dos pressupostos espíritas. Independente da qualidade dessa realização, sempre me chama atenção o fato de muitos filmes de terror ignorarem o contexto social e não se utilizarem de metáforas ou alegorias para falar de seu tempo. Por isso, acabam sendo mais sintomas de um tempo do que agentes críticos dele. Cinema não é só o que vemos, isto é, a sua história, mas o ele deixa em nós como motor de um pensamento e sociedade.

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