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DE REPENTE, NUM DOMINGO (1983) Dir. François Truffaut


Texto por Marco Fialho

De Repente, Num Domingo é o último filme do mestre François Truffaut e pode ser visto como uma obra que homenageia a magia do cinema. Em 1979, o diretor deu uma entrevista em que falou acerca de suas crenças no cinema: 

"Para que os filmes parem de se assemelhar a documentários, devemos voltar ao artifício. Creio que provavelmente foi isso que primeiro me interessou em Hitchcock. Se existiu um pensamento constante em minha vida é a convicção de que o inimigo do tipo de cinema de que eu gosto é o documentário. Jamais filmei um documentário em toda a minha vida e espero nunca fazê-lo (...) O que me levou ao cinema foi o meu amor pela ficção, e comecei a fazer filmes por conta do meu desejo de estruturar uma história de ficção." (in Gillain, Anne. O Cinema Segundo François Truffaut. Ed. Nova Fronteira, Rio de Janeiro, RJ, 1990, p. 428 e 429) 

Dentro dessa ideia de fazer um cinema onde a ficção não dava margem para o documentário, De Repente, Num Domingo pode ser encarado como o seu maior exemplar cinematográfico. Chega a ser estranho ter que dizer isso de seu derradeiro trabalho, ainda mais porque Truffaut sequer desconfiava que morreria muito em breve. O fato desse ser um filme onde o diretor "brinca" com o cinema, com a sua história, especialmente com o filme noir, uma das grandes expressões estéticas do cinema, um estilo bem demarcado e volta e meia resgatado por diretores contemporâneos nos 100 anos que o cinema estava prestes a comemorar, em 1985.         

Entretanto, Truffaut não realiza um filme noir qualquer, ou se preferir, um noir a mais, ele o faz subvertendo o noir em muitos aspectos, como o fato de não usar a ideia de uma femme fatale blond, como era habitual nos filmes clássicos dos anos 1930 e 1940. Em De Repente, Num Domingo, a heroína é uma morena, Barbara, interpretada com muito vigor por Fanny Ardant. Sua personagem é uma secretária de uma imobiliária, que faz a vez de detetive, mesmo não sendo, e inicia investigações à revelia da polícia.

Outra característica subversiva de Truffaut para o gênero, foi transformá-lo de um assunto essencialmente masculino na história do cinema em um gênero feminino, o que traz um ruído interessante para o clássico noir onde as mulheres não costumavam ocupar esse papel. Não é novidade no cinema de Truffaut dar protagonismo às mulheres nas ações, dando destaque no enredo, fazendo delas peças-chave e salvaguardando seus pontos de vista. É importante frisar que Fanny Ardant é a única protagonista de De Repente, Num Domingo, pois o personagem de Jean-Louis Trintignant, Julien Vercel, dono da imobiliária em que ela trabalha, passa o filme quase todo no esconderijo, por ser o maior suspeito do assassinato da Sra. Vercel, sua esposa (essa sim uma loura típica do noir, que Truffaut caprichosamente faz ela sumir logo no início do filme). Inclusive, Truffaut promove várias brincadeiras sarcásticas no roteiro em relação ao papel das loiras no noir. 

O fato do filme ter sido filmado em P&B, vem de uma reflexão que Truffaut fez em relação a como a televisão veio a solapar esse tipo de cinema que abdicava da imensa paleta que o filme colorido oferecia. A atitude de Truffaut reforçava muito a ideia de que o P&B dialogava muito bem com o cinema, que em pleno anos 1980, ele representava um elemento de distinção à televisão que massacrou tanto a audiência do cinema quanto a sua estética. 

Mas Truffaut sabe o que explorar do noir para o seu filme. Assim, conforme o mistério vai tomando conta da trama, as cenas noturnas e a chuva adentram com força, para criar uma atmosfera muito própria e com contornos de fantasia, exatamente algo que Truffaut queria imprimir na obra. Esse é o típico filme em que somos conduzidos pela sedução da imaginação cinematográfica, onde a experiência com outros filmes ajudam numa viagem sensorial poderosa, capaz de nos desligar do mundo por quase duas horas. A fotografia de Nestor Almendros, seu habitual parceiro na concepção visual de seus filmes, endossa a atmosfera de mistério, com cenas noturnas magníficas e filmadas sem muitos takes alternativos, para se assemelhar ao estilo dos filmes B norte-americanos e isso confere uma agilidade impressionante ao filme. 

E o que dizer da equipe do filme? Truffaut tinha colaboradores perenes, como o músico Georges Delerue, que assina a grande maioria de suas trilhas musicais, deixando uma marca indelével na obra do diretor, inclusive aqui em De Repente, Num Domingo. É preciso ainda mencionar o trabalho da roteirista Suzanne Schiffman, que dividiu quase todos os roteiros com Truffaut, além de Jean Aurel, que juntos formavam um trio de confiança para o desenvolvimento das histórias a serem filmadas. 

E por falar em equipe, sempre passa desapercebida pelas análises que fazem de De Repente, Num Domingo que a personagem Barbara faz parte de uma equipe de teatro, que se prepara para apresentar uma adaptação de O Corcunda de Notre Dame, de Victor Hugo, e que os ensaios estão a rondar a mise en scène do início até o fim do filme. Se a peça discute um amor improvável, a de um corcunda por uma bela dama, Truffaut trabalha o tema romântico transitando na trama como um elemento aparentemente circunstancial, embora ele se descortine  expressivo, por mostrar o papel da arte de representar, e mais ainda, do artifício que Truffaut tanto defendia para o cinema. É interessante poder observar nesses ensaios que Truffaut traz para dentro do filme, o quanto existe de artesanal, de improvisos nesses misteriosos takes que o mestre introduz quase como um grande chiste e para mostrar o quanto é mundano essa forma de arte, que faz e como ela se refaz a todo instante.  

Mas nota-se que de repente temos Barbara, vestida como a personagem teatral numa investigação (por não ter dado tempo de trocar de roupa), e assim, ficamos com a impressão de que a cena teatral invadiu a cena do filme noir. Mas antes, é bom lembrar que é o filme noir que entra no ensaio teatral para atrapalhar sua fluência. Evidente, que nada disso é gratuito para Truffaut, ele sabia bem o que estava operando naquele momento. Como um bom filme noir, a trama de De Repente, Num Domingo ora desvia nossa atenção ora nos aproxima de desvendar os crimes, em um movimento oscilatório que é intrínseco a esse tipo de narrativa. E isso confere leveza e atenção do público que começa a ficar confuso com tantas referências, umas falsas outras nem tanto.

Algo que chama atenção na tecitura de De Repente, Num Domingo, é como Truffaut embaralha a temporalidade. Tem momentos que achamos que estamos fora do tempo, em um passado relativamente próximo, o dos anos 1930, talvez por nos jogar numa atmosfera acentuadamente noir que nos desloca dos anos 1980 para os filmes dos anos 1930, com seus cabarés musicais e prostíbulos. Truffaut brinca com essas fantasias que são próprias do universo cinematográfico, com os tipos de personagem que transitam pelos ambientes noturnos e pela culpa do crime. E a música de Georges Delerue sabe nos arremessar nessas tramas detetivescas, as aproximando de um submundo desconhecido, charmoso e irresistível ao voyeurismo do espectador. As janelas frisadas, acortinadas, translúcidas que o fotógrafo Nestor Almendros explora com imensa competência, funciona como um tipo de teletransporte para uma outra época, como se o presente visitasse sem cerimônia o passado.      

Sem dúvida, De Repente, Num Domingo é um dos filmes mais prazerosos de Truffaut. O próprio Truffaut chegou a sublinhar que "fazemos um filme pelo nosso prazer e na esperança de que o público queira compartilhar dele. Se fazer filmes se tornar um dever, passarei a fazer outra coisa. Devemos usar o nosso tempo como gostamos, e essa é a razão pela qual escolhi o cinema" (in Gillain, Anne. O Cinema Segundo François Truffaut. Ed. Nova Fronteira, Rio de Janeiro, RJ, 1990, p. 439)

Quando falamos de amor ao cinema em Truffaut, não podemos esquecer o quanto ele amava Alfred Hitchcock e se pensarmos a contribuição de Truffaut para o cinema ao filmar De Repente, Num Domingo chegaremos novamente na influência do mestre inglês na filmografia do nosso mestre francês. Aqui, ele impregna o filme noir de Hitchcock, por trazer a beleza e a sofisticação dos planos como principal mote narrativo. Fora as citações explícitas ao mestre inglês quando filma uma briga entre Vercel e a esposa, nos transformando em voyeur tal como James Stewart em Janela Indiscreta (1954), inclusive na trilha musical de Georges Delerue, que também participa dessa citação.

Pode-se dizer então que esse é um filme mais solto, e por isso, atípico de Truffaut? Creio que não se deve ser tão radical assim e responder a essa pergunta de maneira tão peremptória. Se De Repente, Num Domingo não chega a tematizar o amor, Truffaut consegue um jeito de inseri-lo na trama e dar a ele uma certa relevância, quando Barbara confessa que realizou todo aquele circo investigatório por amar Vercel. O que mostra que para Truffaut nada é mais motivador na vida do que o amor. É ele que nos impulsiona para as loucuras e nos faz encarar perigos, até os que levam à morte. Truffaut, não poderia se despedir melhor do cinema, homenageando, em uma tacada só, o amor e o cinema.

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