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A VIDA DE CHUCK (2024) Dir. Mike Flanagan


Texto por Marco Fialho

A Vida de Chuck se utiliza de um artifício de montagem, no qual o filme é visto em atos temporalmente de trás para frente, que visa esconder do espectador a explicação acerca do que está sendo visto, e assim, aumentar a expectativa sobre o tema abordado na obra. O Curioso Caso de Benjamin Button (David Fincher) e Amnésia (Christopher Nolan) já foram exaltados por usarem o mesmo artifício narrativo. Mas será que aqui também funciona?  

A grande questão de A Vida de Chuck é que a expectativa sobre a história se quebra logo no começo do segundo ato, quando começamos a descobrir quem afinal é o tal Chuck (Tom Hiddleston) que aparece insistentemente no primeiro ato do filme em quadros fixos como um fenômeno sobrenatural dentro de uma outra história. A nossa curiosidade inicial é desfeita, assim como o elemento sobrenatural que ele trazia (apesar que um pequeno toque sobrenatural ainda persiste em um tal sótão misterioso na casa do seu avô - interpretado por Mark Hamill). 

Mas sobretudo, A Vida de Chuck cansa pelo excesso de informações repetitivas e por anular o próprio viés crítico que ameaça construir no primeiro ato, onde havia uma dose de questionamento sobre a comunicação na contemporaneidade e a dependência humana dos meios tecnológicos, em especial do celular. Por isso o filme nessa parte ainda preserva um interesse sobre ele. 

Apesar de A Vida de Chuck despertar alguma dose de interesse no primeiro ato, existe desde esse ato um problema narrativo sério. Destaco, em especial, a narração em voz over que se fosse subtraída de todo o filme não faria nenhuma falta, por ser ela apenas um elemento reiterativo a tentar explicar o que já está implícito, ou até mesmo dito, pela imagem e diálogos. São estratégias adotadas pela direção que vão minando o próprio terreno narrativo do filme, a velha necessidade de querer explicar tudo o que é filmado. Mas essa estratégia pode parecer até ingênua, mas eu prefiro chamá-la de discurso ideológico, de controle ou manipulação sobre o que o espectador está assistindo. Esse tipo de narração induz a uma leitura específica sobre a história ali narrada, portanto, não há nada de ingênuo em sua escolha como instância narrativa.    

Fora a narrativa, devemos lembrar o quanto que A Vida de Chuck também se sustenta pelas já batidas estratégias moralistas, de querer vender antiquados valores morais ao primeiro incauto que cruzar pelo caminho. O filme nos impulsiona a pensar que um filme além de entreter pode levar "ensinamentos" sobre o que é a vida, como ela acontece de verdade e como devemos aceitar com conformismo às agruras que emana. A mensagem é clara: "fica aqui assistindo a esse filme que eu lhe mostro o quanto a vida pode ser dura e maravilhosa". Evidente que essa seria uma mensagem ótima de se concluir ao final do filme, mas seria mais interessante que essa tal mensagem viesse do espectador, não diretamente do filme. Cinematograficamente, nada é mais desmotivador do que essa proposta de infantilizar o público vinda de A Vida de Chuck. O filme é baseado em uma das histórias mais famosas do prestigiado escritor Stephen King, muito afeito às tramas de terror, talvez venha daí o primeiro ato sinistro que tem no filme. 

Alguém pode argumentar que A Vida de Chuck se sustenta justamente pelas mensagens edificantes. Mas aí retruco de pronto perguntando como assim, se o tal Chuck aceita a mediocridade como o seu padrão de vida? Qual moral se pode tirar desse filme? A de que a vida média, sem riscos vale a pena ou meramente uma dança mais ousada há seis meses antes de morrer? Sim, porque essa é a vida de Chuck, se organizarmos o filme dentro de sua sequência temporal. O início soturno que vemos no primeiro ato se desfaz logo a seguir no segundo e se transforma igualmente, numa análise retroativa, em mais um ato banal, de um mundo se acabando por causa da vida de um homem médio conformado e passivo como tantos que existem nos Estados Unidos. 

Como é ousado e complicada a ideia que tenta manter de pé o edifício cinematográfico de A Vida de Chuck. Tentar vender como exemplar a vida de homem que deixou de fazer dança, que era o que mais gostava e tinha talento, para se dedicar à carreira insossa de contador só poderia ser possível diante um malabarismo moral forçadíssimo. Afinal, não nasceu na Era Trump dos tarifaços um esforço para encenar valores edificantes estadunidenses, de tentar salvar a autoestima do seu povo e de sua economia combalida. A indústria hollywoodiana está repleta de obras que tentam levantar uma moral que na prática está cada vez mais decadente e sem sentido. A necessidade oficial de protecionismo à fórceps já simboliza em si uma ação de fraqueza de um mercado que não consegue mais simplesmente ser o mais forte. 

O que A Vida de Chuck faz é tentar construir um totem egocêntrico de um homem simples dos Estados Unidos que carrega o universo consigo, isto é, mais um exercício egocêntrico insuportável e desnecessário vendido como um valor aceitável de uma cultura em franco declínio. Vale lembrar que o universo morre junto com o personagem. Claro que isso deve ser lido como uma metáfora e que assim devemos pensa-la. A inclusão das teorias de Carl Sagan no filme servem não como um elemento de aprofundamento filosófico, mas sim como um sustentáculo ideológico pseudo científico para enaltecer o ego de um país moralmente em frangalhos, que ainda insiste em submeter o Planeta inteiro sob o seu domínio, mas que já percebe o quanto isso não é mais viável. 

Conforme já mencionei acima, o diretor Mike Flanagan guarda um tal segredo no sótão da casa do avô de Chuck, um lugar que misteriosamente só pode ser acesso por ele. E qual o tamanho da decepção quando vemos a besteira que era esse imenso segredo. Mais uma artimanha sem graça para prender a atenção do espectador. Se você gosta daquele filme que calculado para manipular as suas emoções, inclusive a trilha musical funciona sorrateiramente para isso, sem estardalhaço, embora exata nessa missão de capturar o emocional do espectador, A Vida de Chuck o levará para o lugar desejado. Entretanto, meus quase trinta e nove anos de cinefilia me distanciam desse filme, pois conheço cada atalho que o impulsiona para um certo discurso ideológico que passa ao largo de mim.

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