Texto por Marco Fialho
A Noite Americana, conforme o título prenuncia, versa sobre o artifício do cinema. O filme inteiro se passa em um set de cinema, portanto, temos aqui um caso típico de um filme dentro do filme. Mas A Noite Americana com certeza é bem mais do que isso, senão não seria um filme de Truffaut. O próprio Truffaut numa entrevista para uma televisão francesa disse que a obra era uma crônica sobre uma filmagem.
Dessa forma, somos mergulhados tanto na história que está sendo filmada como no processo de uma equipe durante a filmagem de um filme fictício chamado A Chegada de Pâmela. Lógico, que temos então duas histórias ficcionais que correm em paralelo e isso não deixa de ser inusitado, pois os atores estão em duas frentes diferentes. Ao invés do glamour, o que vemos são as contradições entre o que se filma e o que se faz para que aquele filme chegar até o público, o que fica gravado na película. Talvez a cena do gatinho seja a mais simbólica dessa realidade cotidiana de um set de filmagem. Como fazê-lo entender que precisa comer uma tal comida porque será filmado. Resta a nós, espectadores, rir desse momento tão insólito e fora do controle.
O mais intrigante ainda é ver o próprio Truffaut fazendo o papel do diretor do filme, que a grosso modo, lembra muito uma história sua, já que a temática central é a de uma jovem esposa que trai o marido com o pai dele. Enquanto essa história transcorre, temos as confusões típicas de uma filmagem, os amores secretos, as traições, as amizades e todos os afetos que normalmente acabam por prevalecer sobre todos os problemas. E Truffaut mantem a todo instante um tom cômico, como se realizasse uma comédia de costumes, sem esquecer de inserir uns toques trágicos, senão não seria um Truffaut verdadeiro.
Algo interessante em A Noite Americana é como Truffaut enseja uma mise en scène dentro de uma outra mise en scène, com o diretor tendo que administrar ambos de uma só vez. Truffaut escolhe deixar a câmera a mais solta possível, ainda mais que a trama tem diversos personagens e vários de alguma forma tem lá seus momentos de protagonismo. Há um entra e sai de cena constante, e esse fato cria uma dinâmica interessante e que traduz bem o caos que é um ambiente de filmagem.
Algumas homenagens cinematográficas surgem em meio à trama e a mais significativa é um sonho em que o personagem de Truffaut, o diretor, é ainda uma criança e rouba de um cinema várias fotos promocionais de Cidadão Kane (1941), um dos grandes filmes da história do cinema e um dos mais importantes para Truffaut. Mas é bom lembrar que A Noite Americana inicia com um plano do filme fictício e ele remete a um plano-sequência numa rua, o que me remeteu de imediato à abertura de A Marca da Maldade (1958), quando Orson Welles nos brinda com um dos melhores planos-sequências da história, tamanha a coordenação que apresenta dos elementos cênicos em movimentos.
Ao mostrar a filmagem desses planos-sequência, Truffaut expõe a dificuldade de se administrar um número elevado de figurantes, além do envolvimento de muitos profissionais técnicos envolvidos para que tudo fique crível e pareça verdadeiro, pois ainda tem uma maquinaria gigantesca que torna tudo mais complicado de se filmar, com gruas que levam as câmeras para posições e movimentos difíceis de serem colocados pelas mãos humanas. Mas cinema não é só técnica e Truffaut nos mostra isso em pequenas cenas e detalhes que vai registrando durante o filme, como a cena em que recebe uma caixa de livros, em que podemos ver que versavam sobre Buñuel, Lubitsch, Dreyer, Bergman, Godard, Rossellini, Hawks, Bresson, e óbvio, Hitchcock. Sem estudo, conhecimento da história e reflexão não se faz cinema. Simples assim. Vale a pena ficar atento e perceber algumas frases lapidares sobre cinema que Truffaut vai inserindo nos textos de alguns personagens, o que não deixa de ser um luxo para nós que tanto amamos o cinema.
Outro aspecto que Truffaut aborda em A Noite Americana é o do trabalho que muitas vezes precisa ser refeito e refilmado por conta de uma falha em algum equipamento. Muitas vezes são cenas difíceis de serem feitas e que dão errado. Há ainda os planos que são pura invenção como o que constroem apenas uma janela para que se possa falsear um edifício inteiro. Como o público só verá uma perspectiva dessa janela, a equipe de arte só monta aquele pequeno espaço a ser filmado. São truques utilizados em filmagens em estúdio, onde tudo é mais controlado.
A Noite Americana se ocupa muito do afazer de um diretor durante o processo de uma filmagem, a quantidade de detalhes e pessoas que recorrem a ele, os conflitos internos que precisa resolver, os assédios da imprensa ávida por informações e fofocas, e a oscilação psicológica dos envolvidos na filmagem, especialmente os atores, sempre com crises intermináveis. Mas há os afetos necessários para que um filme possa existir, os sacrifícios de se fazer cada plano filmado. Enquanto Oito e Meio (1963), clássico irrefutável de Federico Fellini abordava os meandros e tensões de uma pré-filmagem, a Noite Americana foca na filmagem em si, no carrossel de emoções que povoam esse delicado processo. E Truffaut sabe conduzir esse trabalho com esmero, sempre costurando as diversas perspectivas e olhares com o seu cuidado habitual. É como se fosse o documentário possível de alguém que nunca flertou muito com a ideia de se fazer um documentário.
Antes de encerrar nossa análise, deixemos que o próprio Truffaut discurse sobre a afinidade que há nesse trabalho em relação ao documentário:
"A Noite Americana pretende fornecer o maior número possível de informações sobre a gravação de um filme. Mas, sabe, não cheguei ao cinema por meio do documentário. Foi a ficção que me trouxe a esse metiê. Gosto da ideia de as pessoas representarem personagens, que lhes aconteçam coisas interessantes. Há um certo segmento do cinema moderno que tenta destruir essa noção de personagens e situações. Isso não me interessa de maneira alguma. Eu me manterei sempre ligado à forma de cinema que me levou ao cinema. Mesmo que eu fosse o único a contar uma história, ainda assim insistiria em fazê-lo." (in Gillain, Anne. O Cinema Segundo François Truffaut. Ed. Nova Fronteira, Rio de Janeiro, RJ, 1990, p. 311)
A Noite Americana não deixa de ser mais um filme de Truffaut sobre o amor, mas agora sobre o amor pelo ofício, pela loucura que é realizar uma ideia que está em sua cabeça e que precisa contaminar a todos que estão a sua volta dispostos a seguir com o diretor de um filme. O amor mais uma vez define e modela tudo, em especial o próprio trabalho e vida de François Truffaut.
Comentários
Postar um comentário
Deixe seu comentário. Quero saber o que você achou do meu texto. Obrigado!