Texto por Marco Fialho
A Mulher do Lado é o penúltimo filme dirigido por François Truffaut, antes dele, tragicamente, nos deixar. É mais uma obra em que o mestre francês versa sobre a natureza do amor, sua maior temática da carreira. O envolvimento dele com o tema é tão intenso e profundo, que se reunirmos toda a obra de Truffaut, poderíamos fazer um tratado sobre o amor. A cada novo filme, Truffaut tece as variantes do amor e mostra como esse tema possui os mais variados vieses. Mas uma vez, há um apelo ao mestre Alfred Hitchcock, e um toque de suspense que vai tomando conta da trama romântica, um traço bem significativo na sua filmografia.
Truffaut definiu A Mulher do Lado como um filme de personagens, onde os cenários e a atmosfera estão a serviço deles e essa característica narrativa traz para a obra uma grande densidade dramática. Esse cuidado com os personagens se faz propício porque Truffaut ama os atores e o ato de trabalhar com eles. Inclusive os atores reconheciam como era fácil conviver profissionalmente como o diretor. E todos conheciam o quanto o cinema de Truffaut era dependente deles, afinal, como tratar do amor sem se pensar no aspecto dramático que só os atores podem contribuir. O diretor, numa entrevista para o lançamento do filme chegou a dizer que "quando temos diante da câmera uma atriz como Jeanne Moreau ou Fanny Ardant, sentimos que o roteiro está se enriquecendo e a película gravada torna-se preciosa." (in Gillain, Anne. O Cinema Segundo François Truffaut. Ed. Nova Fronteira, Rio de Janeiro, RJ, 1990, p. 403)
Essencialmente, o A Mulher do Lado expõe uma ideia extrema do amor, uma face doentia que pode ser revelada no seu exercício sem freios. Por conta desses atos radicais em relação ao amor são despertados sentimentos profundos de angústia nos dois protagonistas, que assim de pronto, parecem terem saído de um filme do sueco Ingmar Bergman. O filme nos apresenta carinhosamente os dois personagens. Um deles é o insinuante Bernard (Gérard Depardieu), e a outra, é uma triste Mathilde (Fanny Ardant). Ambos, sabem que precisam fugir desse amor recíproco, carnal e inquieto, que só traz confusão e infelicidade, mas nem sempre o racional consegue estar no comando das ações humanas.
Truffaut leva o sentimento do amor ao nível do insuportável, e com muita pertinência, extrai bem mais questionamentos do que respostas definitivas sobre o amor levado ao extremo. Bernard e Mathilde tiveram um amor intenso 8 anos antes de um casual reencontro como vizinhos, ambos já bem casados, com esposa e marido dedicados e amorosos. Mas o amor é algo incontrolável, embora no caso de A Mulher do Lado, seja difícil viver junto e insuportável estar separados. Essa é a equação sem solução que o filme coloca, o que torna inevitável um final trágico para ambos os personagens.
Mesmo que a temática, os atores, as cores, a direção e a mise en scène sejam magníficos e impecáveis, como é de hábito nas obras de François Truffaut, o que mais surpreende em A Mulher do Lado é o suspense que guia cada cena. A narrativa conta ainda com uma confidente, a Madame Jouve (Véronique Silver), que nos apresenta a história, se comunicando diretamente conosco, olho no olho, subvertendo a regra clássica de jamais se quebrar a tal quarta parede cinematográfica. Essa personagem vai rondar o filme todo como um aviso premonitório, afinal, ela tem uma deficiência nas pernas, fruto de um ato de amor desesperado que viveu na juventude.
A Mulher do Lado tem cenas primorosas e algumas desconcertantes. Uma das melhores é o olhar penetrante e irresistível de Mathilde para Bernard, logo que são reapresentados um ao outro na famosa cena do reencontro do casal. Mas tem outras, como a transa deles no carro que é igualmente fabulosa e muito bem filmada, com os elegantérrimos planos-detalhes que só Truffaut sabia fazer. É incrível como Truffaut encandeia cada sequência, a ponto de despertar o interesse do espectador para todas as cenas que vemos. É a magia que só os grandes artistas consegue reluzir.
É bom lembrar que Fanny Ardant era uma atriz desconhecida ao fazer esse filme, mesmo que sua atuação pareça de uma veterana. A Mathilde de Ardant é toda construída pelo mistério, e o mais irônico é o quanto a sua personagem falava sempre de maneira franca e ainda assim, deixava margem para doses preciosas de mistério sobre si. Truffaut ajuda muito pela forma como pensa a trama, sem jamais se utilizar de flashbacks, o que de certo chaparia a história. Subtraindo as cenas do passado, ele provoca que cada espectador o reelabore somente ouvindo os depoimentos dos protagonistas, o que é genial por aguçar a sua imaginação. Assim, jamais ver na tela o amor deles no passado se torna um dos maiores atrativos da história.
A história proposta por Truffaut é tão forte e gera muitas cenas desconcertantes, como a do escândalo agressivo de Bernard na festa de despedida que Mathilde e o marido deram antes de realizarem uma nova viagem de lua de mel. Há ainda a internação por crise nervosa de Mathilde, onde só a presença de Bernard no hospital conseguiu tirá-la da crise. Esse é um tipo de amor tão exasperado, que chega a fazer o espectador duvidar da validade de qualquer outro amor existente no mundo. Só que, se analisarmos com a devida atenção, veremos que nele há uma dose expressiva de dor e tragédia, o que o aproxima de uma flagrante patologia. É Truffaut colocando em suspensão a própria ideia de um amor imaculado ou a impossibilidade de sua existência saudável.
A Mulher do Lado é sem dúvida uma obra que consolida a maturidade artística de Truffaut. É fantástica a coragem dele como diretor de filmar um final dando uma guinada de estilo. Se antes tudo era tão voltado para um estilo realista, ele vira a chave o opta por um viés onírico e sombrio para encerrar o filme. Sem medo, ele abusa das sombras e instaura um clima noir inesperadamente na mise en scène e constrói a tragédia nesse contexto. Essa sequência diz muito sobre Truffaut e a sua paixão pelo cinema. Se o elemento cinematográfico não for o mais importante numa história sua, definitivamente, esse não é um filme de Truffaut. E essa é a impressão que ficamos, ao sair dessa obra, cujos contornos dramáticos são precisos, e a sua realização, esteticamente, perfeita.

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